Os olhinhos vivazes e curiosos de Kelly, Meg, Castor, Rabicho e Soneca me acompanham conduzindo Bob para a pickup. Bob me olha e faz o que sabe fazer de melhor. Dá pequenos saltos e encosta feliz em minha perna, balançando o rabo como um estandarte. Convido-o a subir no carro e o amarro cuidadosamente na tralha traseira para evitar acidentes. Ele o faz sem resistir. Não sabe que duro golpe seu amigo lhe dará. Estou sozinho nesta empreita. Vania está há dois dias viajando e só voltará dali dois dias. Está é uma conversa entre eu e Bob - a última conversa de nossas vidas.
06:40h, 06 de julho de 2013. Faz muito frio - mais ou menos 7 graus no alto da serra. Os vidros do carro estão embaçados. Nossas respirações logo se condensam graciosamente em vapores que seguem o regime dos ventos cortantes que deslizam por entre pinheiros que nos circundam. Aqueles mesmos pinheiros que plantei com Vania, pequenos filhotes de árvore, que hoje são gigantes a nos espreitar, silvando lá do alto. Enquanto vou ajeitando o amigo, penso que nossas existências estavam unidas pela mesma sina. Tanto ele como eu sonháramos morrer naquelas paragens. Na verdade eu sonhava isso por ele. De qualquer modo isso não era mais verdade. Nós dois estávamos deixando a Serra do Cervo. Eu ainda voltaria lá para assentar de vez minha retirada; ele para nunca mais.
Bob estava ansioso por dar um passeio e capto seu olhar para as árvores e a serra. Penso, por um instante, que se tudo der certo, se esta pequena viagem até a praça central da cidade for um sucesso, ele nunca mais verá esta paisagem. Esse pensamento me contrai o peito e me dá um pouco de vergonha. Ia deixar o amigo na barraca de adoção aos cuidados de Alessandra Soares, da Ong Voluntários da Pata.
No sábado anterior, a pedido de Vania eu já fizera o mesmo trajeto emocional na tentativa de doá-lo e agora já podia conter as lágrimas, como manda o figurino da existência: não se sofre com a mesma intensidade duas vezes o mesmo fato. Se naquele sábado eu estava trêmulo e cada pessoa que o afagava me fazia mais um nó na garganta, agora me sentia mais seguro que este era o melhor destino ao querido Bob. A convivência com outros machos lhe impunha um confinamento cruel e que não era digno dele. Na verdade, desde sempre, de um modo ou de outro, eu sabia que nossa casa na serra era uma passagem para ele. Mas, não achava que o era para mim, pelos menos até recentemente. Ingenuidade e prepotência minha frente a frivolidade da existência.
Aciono o carro. São 07:20. Desço lentamente a estrada, passo pela entrada e o aperto no coração reaparece. Admito para mim que estou ressentindo outras separações. Também eu estava me despedindo da serra que tanto amava; dos sonhos e fantasias que aqueci no peito e na mente. Fecho o portão com fraqueza de espírito, como se por baixo da pele houvesse somente o vapor daquela manhã, descolado das árvores e da terra. Olho para Bob e ele retribui sem compreender. Talvez se perguntasse por qual motivo não podia sair dali e correr pelos pastos do Sr. Antonio, pelas estradas do Catiguá. Porque seu amado amigo mudara o ritual que tanto gostava?
Como um corisco me passa pela mente nossa história de amor. Tudo começou quando tive que fazer os cuidados médicos, com injeções e cuidados na pele, depois dele ter sido resgatado em condições físicas dramáticas. Vania estava lá e pode contar com detalhes. Dotado de grande saúde e ânimo de vida, logo sarou, cicatrizou e sua pelagem adquiriu um brilho especial. Aprendeu os comandos básicos de ir para casa e ficar no canil, quando isso era necessário. também adotou quase que imediatamente seu novo nome. Não precisou mais que alguns dias para atender por Bob, como se houvesse nascido Bob. Sempre soube que ele não era cão abandonado, o clássico cachorro de rua; era um cão fugitivo - e não por maus tratos. Suas chagas eram, claramente, o resultado de combates por um provável cio de fêmea.
Fomos para a praça Senador José Bento. Dirigi devagar para não congelá-lo no denso nevoeiro que se formava ao rés da serra, na calha do Rio Cervo. Tive pouco mais de 20 minutos para repassar as décadas que vivi nos bosques, que eu mesmo planteie, e na curta, porém intensa amizade pelo Bob. Quando ele chegou por aquelas paisagens tudo que verdejava tinha os vestígios de quatro mãos; ele fruía sem culpas essa nossa dedicação.
08:00h. Levei Bob comigo a outra praça, desta vez a João Pinheiro, onde ministrei a costumeira aula de taichi indiano. Desci-o do carro evitando que se sentisse abandonado e o amarrei em uma corda longa para que esticasse as pernas. Ele tremia mais de emoção do que de frio. Permaneceu longo tempo com as patas cruzadas sem tirar os olhos de mim. Pensei que nossa hora estava chegando. Voltamos para a praça Senador José Bento. Quem nos recebeu foi Alessandra Soares; lhe entrego Bob que colava em minhas pernas como se dissesse: "Na dúvida, onde você for eu vou". Amarro-o em um banco, me sento na guia do jardim e ele recosta o rosto em minhas pernas. Beijo-lhe embaixo dos olhos, beijo-lhe a cabeça e mergulho o rosto na pelagem entre orelhas e pescoço e inspiro profundamente o perfume abaixo de suas orelhas. "Bob, eu vou ali, mas já volto. Você vai ficar muito bem. Tudo vai dar certo. Papai precisa trabalhar, mas não vai lhe deixar" menti para mim mesmo, com os olhos ardendo. Sabia que seria muito difícil vê-lo outra vez. Tinha que trabalhar o dia todo, e depois iria a SP, para onde me mudaria. Bob não tinha como saber disso e me olhou preocupado quando me afastei e fez menção de latir, mas depois calou. "Pode deixar que eu cuido dele", disse Alessandra. Não consegui responder.
14:40h. Andréa Carvalho, que pretendia conhecer Bob para apresenta-lo à Bombom, uma cadela já bem senhora, me liga dizendo que eu ia ter uma surpresa e tanto, ao voltar à praça. Só podia dizer que era algo incrível. Logo imaginei que tinha a ver com o meu amigo. Mais tarde fui até lá.
Alessandra imediatamente me conta que os donos do Bob o reconheceram e o haviam levado para casa. Um homem jovem veio trazer alguns filhotes que nasceram de uma cadela que fugira do seu canil. O inusitado é que Bob fugira junto com ela, que por sua vez estava no cio (os filhotes em sua mão eram o produto dessa fuga e as chagas do cão, produto dessa aventura!). Contou ainda que naquele dia em que Bob foi resgatado, sua esposa o vira pouco antes e foi buscar ajuda; este desencontro de minutos resultou nesta história de amor. Disse ainda que o nome do cão era "Sossego". O nó na garganta quase me impede de perguntar se Bob os reconhecera. A resposta de Alessandra e as fotos que vi selaram minhas dúvidas - meu Bob encontrara seus primeiros amores. Agora estava acabado para nós. A chance de nos encontrarmos de novo era remota. Algum recanto em mim, feito de uma mole substância, se alegrava ainda assim. Ele ia ter uma vida bem melhor que aquela que podia oferecer-lhe.
Uma semana depois, daqui de São Paulo, fico imaginando ele rindo, com aqueles dentões, seduzindo seus amigos humanos para dar uma volta pelas praças e ruas. Sei que meu cheiro ficará em sua memória por muito e muito tempo. E que sua imagem povoará meu espírito até que as manhãs do futuro ofusquem tudo que é vivo. Afinal ainda guardo indeléveis as imagens do Nhenhéu, Bolinha, Lili e Kendi, cães de minha primeira infância; e o que dizer da Zefata, Pinhata e Mariata, as primeiras gatas de minha vida?.
É bem possível que este seja o destino de Bob. Morar nos céus do coração destes humanos que passaram e passarão por sua vida. Um belo destino, afinal.
Em tempo:
Para mim ele se chamará sempre Bob, mas concordo, secretamente, em chamá-lo Bob Sossego. E não se fala mais nisso!
Bob e a amiga Ênia |
Bob estava ansioso por dar um passeio e capto seu olhar para as árvores e a serra. Penso, por um instante, que se tudo der certo, se esta pequena viagem até a praça central da cidade for um sucesso, ele nunca mais verá esta paisagem. Esse pensamento me contrai o peito e me dá um pouco de vergonha. Ia deixar o amigo na barraca de adoção aos cuidados de Alessandra Soares, da Ong Voluntários da Pata.
No sábado anterior, a pedido de Vania eu já fizera o mesmo trajeto emocional na tentativa de doá-lo e agora já podia conter as lágrimas, como manda o figurino da existência: não se sofre com a mesma intensidade duas vezes o mesmo fato. Se naquele sábado eu estava trêmulo e cada pessoa que o afagava me fazia mais um nó na garganta, agora me sentia mais seguro que este era o melhor destino ao querido Bob. A convivência com outros machos lhe impunha um confinamento cruel e que não era digno dele. Na verdade, desde sempre, de um modo ou de outro, eu sabia que nossa casa na serra era uma passagem para ele. Mas, não achava que o era para mim, pelos menos até recentemente. Ingenuidade e prepotência minha frente a frivolidade da existência.
Aciono o carro. São 07:20. Desço lentamente a estrada, passo pela entrada e o aperto no coração reaparece. Admito para mim que estou ressentindo outras separações. Também eu estava me despedindo da serra que tanto amava; dos sonhos e fantasias que aqueci no peito e na mente. Fecho o portão com fraqueza de espírito, como se por baixo da pele houvesse somente o vapor daquela manhã, descolado das árvores e da terra. Olho para Bob e ele retribui sem compreender. Talvez se perguntasse por qual motivo não podia sair dali e correr pelos pastos do Sr. Antonio, pelas estradas do Catiguá. Porque seu amado amigo mudara o ritual que tanto gostava?
Como um corisco me passa pela mente nossa história de amor. Tudo começou quando tive que fazer os cuidados médicos, com injeções e cuidados na pele, depois dele ter sido resgatado em condições físicas dramáticas. Vania estava lá e pode contar com detalhes. Dotado de grande saúde e ânimo de vida, logo sarou, cicatrizou e sua pelagem adquiriu um brilho especial. Aprendeu os comandos básicos de ir para casa e ficar no canil, quando isso era necessário. também adotou quase que imediatamente seu novo nome. Não precisou mais que alguns dias para atender por Bob, como se houvesse nascido Bob. Sempre soube que ele não era cão abandonado, o clássico cachorro de rua; era um cão fugitivo - e não por maus tratos. Suas chagas eram, claramente, o resultado de combates por um provável cio de fêmea.
Fomos para a praça Senador José Bento. Dirigi devagar para não congelá-lo no denso nevoeiro que se formava ao rés da serra, na calha do Rio Cervo. Tive pouco mais de 20 minutos para repassar as décadas que vivi nos bosques, que eu mesmo planteie, e na curta, porém intensa amizade pelo Bob. Quando ele chegou por aquelas paisagens tudo que verdejava tinha os vestígios de quatro mãos; ele fruía sem culpas essa nossa dedicação.
Bob e se amigo Soneca em casa |
14:40h. Andréa Carvalho, que pretendia conhecer Bob para apresenta-lo à Bombom, uma cadela já bem senhora, me liga dizendo que eu ia ter uma surpresa e tanto, ao voltar à praça. Só podia dizer que era algo incrível. Logo imaginei que tinha a ver com o meu amigo. Mais tarde fui até lá.
Uma semana depois, daqui de São Paulo, fico imaginando ele rindo, com aqueles dentões, seduzindo seus amigos humanos para dar uma volta pelas praças e ruas. Sei que meu cheiro ficará em sua memória por muito e muito tempo. E que sua imagem povoará meu espírito até que as manhãs do futuro ofusquem tudo que é vivo. Afinal ainda guardo indeléveis as imagens do Nhenhéu, Bolinha, Lili e Kendi, cães de minha primeira infância; e o que dizer da Zefata, Pinhata e Mariata, as primeiras gatas de minha vida?.
É bem possível que este seja o destino de Bob. Morar nos céus do coração destes humanos que passaram e passarão por sua vida. Um belo destino, afinal.
Em tempo:
Para mim ele se chamará sempre Bob, mas concordo, secretamente, em chamá-lo Bob Sossego. E não se fala mais nisso!