Nas jabuticabeiras, aqui no Cervo, os frutos redondos como bolinhas de gude, as burquinhas de minha infância, negras e brilhantes, já aparecem aqui e ali. Ao olhá-las, brilhando ao sol, imediatamente me remeto aos sete ou oito anos, lá no Jardim Adriane, quando ia buscar algumas delas, às beiras de um regato caudaloso e limpo. A jabuticaba foi daquelas frutas, entre cinco ou seis das que mais gostava. Facilmente competia com as mangas, mexericas, amoras, gabirobas e abacates. Hoje meu paladar se expandiu; gosto de calaburas, nêsperas, quiwis, pinhas, anonas, cambucis, pitangas, cerejas, figos, cabeludinhas, caquis, jambolão, pêssegos, tamarindos, maracujás, jaracatiás, acerolas, goiabas, cajus, lichias, feijoas e outras menos comuns. Não por acaso plantei-as todas em meu pomar para que possa por todo o ano variar os sabores de sucos, doces, geléias e a fruta natural, comida nas sombras de suas copas.
Bem, como ia dizendo, as jabuticabas com seu brilhante negrume me lembram as bolas de gude, e, como sempre acontecia entre os molequinhos desta idade, algumas, por um mistério qualquer, tornavam-se mais cobiçadas que outras. Guardava-as todas em um vidro de meio quilo, cujo conteúdo havia sido comido, só para apreciar longamente, às vezes por mais de hora, sua rutilância ao sol ou com o brilho das lamparinas escuras de querosene e suas chamas, de amarelo amortecido. Mas as que mais me chamavam a atenção eram duas bolinhas pretas, com um brilho profundo, enfeitiçante, parecendo me atrair para dentro de seu nada interior. Estranhamente eu me afundava naquele mundo pequeno e misterioso e me deixava estar. Era como se estivesse dentro da tenda cônica de índios americanos que vira em uma revista de bang-bang; lá dentro era tudo conforto e segurança. Em minha imaginação defendia a tenda dos bandidos vestidos de farda que a atacavam; eu vencia sempre, porque meus revolveres tinham muitas e muitas balas! Os deles apenas seis! Era uma vitória desproporcional! Aí eu saia galopando pela imensa pradaria que ia da mangueira até a porta de casa e tudo acabava com um banho morno de canequinha e queda livre na cama de palha de milho. O barulho da palha sob meu pequeno corpo ia diminuindo até que a bruma espessa do sono chegava sorrateira tentando me domar os pensamentos. Em geral, antes de cair no abismo órfico, pensava no nada dentro das bolas vítreas e sua negridão, dava uma olhada se tudo corria bem com o Daniel e depois ia perdendo contato com os sons vindos da cozinha, onde o pai, a mãe e a vó Pina falavam cada vez mais longe, até que pareciam falar lá embaixo do abacateiro. Depois era o nada, a escuridão reparadora. O molequinho tinha que descansar para jogar burquinha com o Zé Manquitola, espiar timidamente a menina da casa da esquina, comer gabirobas e jabuticabas, nadar no rio e, de quebra, ir à escola, ver os dentes brancos e os olhos verdes de dona Lurdes.
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