“É isso que tem que ser evitado; é preciso não colocar estranheza onde não existe nada. Creio que é este o perigo. Quando se faz um diário: exagera-se tudo, vive-se à espreita, deforma-se constantemente a verdade. Por outro lado, é certo que posso, de um momento para outro – e precisamente em relação a esta caixa ou a qualquer outro objeto – experimentar novamente a impressão de anteontem. Tenho que estar sempre preparado; do contrário, ela mais uma vez me escaparia. [...] Naturalmente, já não posso escrever nada de preciso sobre aquelas histórias de sábado e de anteontem, já estou muto distanciado delas; só posso dizer que, tanto num caso como no outro, não houve nada do que se chama comumente um acontecimento. Sábado, os meninos brincavam com pedras, fazendo-as ricochetear, e quis imitá-los e jogar uma no mar. Nesse momento detive-me, deixei cair a pedra e fui embora. Eu devia ter um ar perdido, provavelmente, já que os meninos riram quando lhes dei as costas”. (Roquentin, escrevendo seu diário, em A Náusea).
Estou com Roquentin. Ao escrever diários deformamos a verdade, mas não mentimos; fabricamos a verdade, a partir desse não-acontecimento – esse cotidiano insosso, sem consistência e sem beleza especial; o fazemos se tornar bordado, retinente, luzidio. Não é que inventamos uma verdade; é que omitimos o geral em prol do detalhe; colocamos uma lente nele e o expomos aos olhos, enquadrado e emoldurado. Carregamos nas tintas aquilo que parece apenas entrevisto, difuso, mal delineado. Fazemos um conto da realidade; uma ficção com a vida. O diário não torna a realidade, por isso, artificial, mas sim, um boato de nossa própria vida. E onde há fumaça, há fogo, dizem. Assim, da fumaça da realidade que é o diário, podemos entrever algum fogo de acontecimento, de realidade – algo que talvez valha a pena contar para algum “querido diário”. Nossas vidas são tão desinteressantes, tão comezinhas, que um diário pode salvá-la da mediocridade; basta reinventá-la, sem mentir, imitando, talvez um humorista que diz: "Eu aumento, mas não invento!"
domingo, 15 de novembro de 2009
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