Adeus Serra do Cervo!

Você que lê este blog já me viu desistir de escrever nele uma outra vez, mas pelo motivo de não encontrar uma história que valesse a pena. Depois voltei atrás por saudades de falar de terra, de bichos e de meu estado de espírito nas serras. Bem, agora é definitivo! Não voltarei mais a este espaço para descrever minha lida pelas serras do Cervo, simplesmente porque não mais estarei por lá. Se vier a escrever sobre minha longa jornada por cada recanto daquele refúgio o será em outro blog, mas para dizer das saudades, reminiscências e imagens indeléveis desta vivência. Este blog será como uma árvore esquecida na retina do viajante em um trem que dispara pelo campo. Ou como mais uma lápide no grande cemitério da web. Grato àqueles que me brindaram com sua leitura. Antes de fechar de vez este espaço farei uma última blogagem, em respeito aos que me seguem. Manterei, limitadamente, o blog http://levileonel.blogspot.com

domingo, 9 de maio de 2010

A música das esferas e o dia das mães!

Na adolescência quis ouvir todos os clássicos da música. Não sei porquê, nem como, me apaixonei por Beethoven, particularmente pela 5ª sinfonia. Depois descobri a nona e fui ganhando mundos novos com Mozart, Bach, Grieg, Brahms, Haendel; acabei descobrindo que por falta de berço, tudo me agradava - de Verdi a Strauss, de Massenet a Bizet. Eu não tinha estilo! Supérfluo, como disse Sartre. Além do que ouvia o romântico Carlos Gomes com a mesma entrega que ouvia os autores do nacionalismo - Villa Lobos e Camargo Guarnieri principalmente. Um pouco mais e fazia a maior das heresias: ouvia rock americano e brasileiro - o nosso Raul Seixas e depois as grandes bandas dos anos anos oitenta.
      Por falta de formação musical, sou a glória dos musicistas; me comovo com quase tudo que ouço. Músicas as mais diversas me arrepiam e sinto facilmente os olhos embaçados por pesadas camadas de água salgada, a respiração forçada como se subisse correndo as íngremes terras do pomar do Cervo. Sem vergonha, admito que nada sei de contrapontos, solfejos, claves etc. Mas é difícil sair de um espetáculo sem passar pela impressão de que fui lavado de cima a baixo, e pelo avesso. Às vezes tenho a sensação de que passei por uma moenda; o corpo fica entre relaxado e triturado. Nunca tenho a música na cabeça nem decoro letras, a não ser pela quinta de Beethoven e a quadragésima nona de Mozart; além de uma ou outra música de bandas que amei.
      Insisto, acredito que seja a audiência sonhada pelos artistas; sempre reajo como se fosse a primeira vez. Surpreendo-me com sons novos, sons que nunca ouvira em cada música que repito. E aí bato palma, grito e peço bis, sem constrangimento. Depois, no carro dirigindo pela MG 179, e em casa, na Serra do Cervo, por alguns dias, cantarolo como aquele velho vinil quebrado, que insistia em ouvia na vitrola no centro da sala, lá na Penha em São Paulo, nos anos setenta.
      Pois, foi assim que sai, ontem, de uma apresentação da orquestra do Conservatório Estadual de Música de Pouso Alegre, no Teatro Municipal. Em homenagem às mães, os músicos convidaram a população que encheu todos os cantos do teatro. Entremeio o alarido de crianças e adultos cheguei atrasado por causa de minha aula de francês. Manhã de sábado, cidade cheia de gente, ando apressado no meio de uma turba andando lenta, ombro a ombro; e na porta do teatro, aberta sem reservas, ainda ouço os últimos acordes de "Trenzinho da alegria". Entro e procuro na platéia abarrotada, como se usasse binóculos, a figura loura de Vania que chegara mais cedo. Não a reconheço a distância; culpa do lusco-fusco e das dezenas de pessoas em pé. Ela chegara mais cedo, indo direto de seu escritório.
       Convidada por Alessandra, sua sócia advogada, Vania jamais perderia a oportunidade de, tiete que é da arte em geral, se sentar quase na ribalta. Ainda assim, não a vi! O maestro já dirigia um arranjo para Adoniran Barbosa, quando me achego a uma pilastra na lateral da platéia e de lá assisto o resto do belo e singelo espetáculo onde os "filhos" do conservatório se esmeram em seus instrumentos. De certo ângulo, vejo Alessandra; a fronte e rosto singularmente pálidos, qual mármore alexandrino, ereta feito estatueta de Rodin, acariciando sua viola de corda. Suas sobrancelhas negras se destacam logo atrás dos óculos desenhando um semblante de concentração infinita, calma e silente como só é possível para aqueles que usam a linguagem da música. Ouviria ela, intimamente, a música das esferas, reservada a Pitágoras? Platão talvez pudesse falar destes mistérios da música a nós pobres mortais ciceroneados por Alessandra.
      Ao terminar o espetáculo, fomos cumprimenta-la na saída. Vania a abraça, com olhos molhados e eu com embargo na voz. Depois, em conversa outra, já no escritório, Vania disse que Alessandra estava salva - salva porque vivia esta paixão. Nos lembramos de que um dia o prazer estético, o amor ao pensamento, a busca da vida criativa já fora a meta da vida clássica entre os helênicos. Nos perguntávamos: seria ainda possível viver estofados dessa força advinda da arte? Talvez Alessandra nos possa dar uma pista! Vania, instada por ela, já pensa em dedilhar algum instrumento. Eu, pelo menos por enquanto, penso em continuar minhas leituras, constituindo-se elas em minha forma de auto-salvação, uma vez que não ouço a música pitagórica. Pode parecer um instrumento improvável, nada clássico, por sinal, mas há muito penso em comprar uma gaita e tocar algo como se fosse um Dylan ou alguém menos inspirado. Vejamos o que vai ser!
       Trabalhamos todos, Vania, Alessandra e eu, em uma antiga casa perto do centro, justamente de esquina com o conservatório, de onde chega a nossos ouvidos a música de seus alunos. De vez em quando voam por suas janelas a voz de um sax, o fio sonoro dos violinos, o rebatimento de tambores e o tilintar de instrumentos vários. Se isso não for suficiente para me informar de meus desejos, creio que meu caso é perdido. Para não me perder de vez passarei pelo ouvido tudo que já ouvi do panteão dos clássicos. Quem sabe dai eu evite ir para uma das camadas do inferno de Dante. Pois é certo que Virgílio, seu guia pelo inferno, amava a música! Ou seria Ovídio, que a aprendera como uma das artes de seduzir?
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       Hoje, comecei enviando longa mensagem à dona Leonilda pelo domingo das mães. Dia chuvoso, ficamos a maior parte do tempo tomados pelos trabalhos domésticos e, vencido pela preguiça, acabei lendo para Vania um capítulo de "M. Bovary". Ainda assim, numa estiagem de minutos, saquei da foice e, enquanto limpava uns pés de banana, colhi meia dúzia de cachos do tipo ouro, nanica, pão e prata. Isso sempre seguido de Vania e pelos "quatro do apocalipse" - Gabi, Kelly, Soneca e Rabicho (por ordem de tamanho). Cada um fazendo o passeio do jeito que sua personalidade impõe. É muito divertido ve-los nas filas do  milharal já dourado pelo ressecamento e já quase prontos para a colheita. Depois V. colheu nêsperas para uma geleia e preparou um pavê de pêssegos para levar amanhã ao escritório, quando, de surpresa, oferecerá à Alessandra pelo espetáculo musical e pelo dia de seu aniversário. Agora, depois de me desvencilhar de uma parte considerável da faina doméstica, escreverei e lerei até vir o sono.