Adeus Serra do Cervo!

Você que lê este blog já me viu desistir de escrever nele uma outra vez, mas pelo motivo de não encontrar uma história que valesse a pena. Depois voltei atrás por saudades de falar de terra, de bichos e de meu estado de espírito nas serras. Bem, agora é definitivo! Não voltarei mais a este espaço para descrever minha lida pelas serras do Cervo, simplesmente porque não mais estarei por lá. Se vier a escrever sobre minha longa jornada por cada recanto daquele refúgio o será em outro blog, mas para dizer das saudades, reminiscências e imagens indeléveis desta vivência. Este blog será como uma árvore esquecida na retina do viajante em um trem que dispara pelo campo. Ou como mais uma lápide no grande cemitério da web. Grato àqueles que me brindaram com sua leitura. Antes de fechar de vez este espaço farei uma última blogagem, em respeito aos que me seguem. Manterei, limitadamente, o blog http://levileonel.blogspot.com

sábado, 26 de janeiro de 2013

A vida vive da morte!

Quanto mais conforto exigimos mais violência praticamos.
Entre leituras sobre psicanálise, a leitura de “O muro” e a preparação do Ateliê do Corpo, me dediquei, neste recesso – que incluiu Natal e Réveillon – a uma reforma da estrada que liga o portão à minha casa. Num certo ponto de uma curva, depois de quase duas décadas sem manutenção, a estradinha estava pior que as ruínas do Coliseu. Foi um teste de paciência, contemplação e engenho, uma vez que reformar é sempre mais complicado do que construir.
Primeiro, carpi o mato e capim que invadiram o leito dos bloquetes; a enxada não pode escavar mais que o suficiente para retirar os bloquetes senão eles ficam ao res do chão e saem flutuando com a primeira chuva forte, destas que grassam por janeiros e fevereiros. Dois centímetros de carpida no máximo. Há um outro objetivo menos, digamos, técnico para carpir tão pouco: muitas minhocas se aproximam das raízes de braquiária e outros capins e ervas daninhas, por causa do oxigênio e matérias orgânicas em decomposição. Aí é que mora o perigo. Quase sempre estão à mercê do fio da lâmina, a não ser que, com muita prática, enfiemos o canto da enxada puxando a planta mais do que cortando. Com isso salvamos a maioria delas de uma decepa cruel.
Às vezes, enquanto enxugava o suor que encharcava boné, camisas, calças e sapatos, parava para meditar o quanto viver é mortal. Pense comigo: sem reassentar os bloquetes no seu lugar original, não consigo subir de carro a serra até minha casa. Daí que, por causa de minha comodidade, e por mais que cuide das minhocas, muitas perecem dolorosamente sob a lâmina da enxada. E não apenas elas, mas também, larvas de besouros, formigas diversas e insetos dos quais não imagino o nome. Perturbo todo o andamento da vida por onde me meto a cuidar da minha vida.
Viver mata. Numa das touceiras de braquiária a lâmina cortou em quatro pedaços um belíssimo espécime de cobra insetívora com pouco mais de dois palmos de comprimento. Demorou meses e meses a chegar à vida adulta, que coloquei termo de um golpe. Noutro monturo de folhas um pequeno sapo foi dilacerado. Uma perda irreparável para a serra, para o mundo, para mim. Na maioria das vezes gasto mais tempo que o usual, salvando pequenos seres da agressividade do meu viver. Como exemplo corriqueiro, quando vou colocar as peças de cimento no seu devido lugar fico esperando as formigas saírem de baixo e mantenho, seguro pelos dedos e com esforço dobrado na espinha, os pesados bloquetes a alguns centímetros do solo. O esforço é grande e às vezes, no auge do cansaço, apoio a peça na perna e com delicadeza empurro, com pequenos piparotes, um ou mais insetos para fora da cava onde o encaixarei. Isso demanda muito mais tempo, energia e sofrimento emocional, pois não acho que tenho mais direitos de viver ali do que eles. Mas, mesmo pesando a nosso (meu e deles) alguns sucessos, o fato é que as vezes falho fragorosamente esmagando inapelavelmente os pequeninos seres.
Daí que o mais comezinho ato de existir encerra rivalidade, competição e letalidade. Ao podar  as árvores que atrapalham a passagem de meu carro, se o faço com pena, ainda assim, o faço. No meu caso com dupla crueldade, pois não sou daqueles que acham que um deus criou o mundo para deleite do homem – o rei da criação. Na verdade não acho que sou mais importante que qualquer grilo ou minhoca, pássaro ou mamífero que por aqui vicejam. Mas, a sofisticação das técnicas de existir me fazem um predador cujo status é o pináculo da cadeia alimentar. Isso seria um nadinha de nada, se eu pudesse seguir existindo sob as leis da natureza, ou seja, com o mais forte comendo o mais fraco. Mas, com a perversidade de minhas práticas nada naturais para existir, acabo subvertendo estas leis simples e bem tramadas. Então, me resta seguir adiante tentando mexer o menos possível com esse delicado equilíbrio de forças, uma vez que minha prática como a de qualquer outro humano é cínica; dizemos: eu sei, mas ainda assim...
Sempre que penso na violência de viver acabo me lembrando dos Jainas – um grupo religioso na Índia, que leva muito a sério a não violência contra qualquer vida. Eles se dividem em duas seitas – Shvetambara e Digambara. Os últimos, a meu ver, são mais radicais: andam despidos e não fazem mal a qualquer vida, estendendo sua atitude até para com os seres vivos microscópicos. Assim, andam com um lenço de linho cobrindo boca e narinas para filtrar o ar e poupar os seres que vivem flutuando a nossa volta. Um esforço supremo que torna suas vidas muito difíceis, uma vez que, ao que me parece, quanto mais conforto na vida, mais violência é necessária para mantê-lo. Não é o caso do Jaina, que vive fazendo o menor mal possível ao mundo. Por isso vivem uma vida impressionantemente ascética e, por isso mesmo, muito, muito precária. Seu único conforto, e só o que querem para si, é o de respeitar a vida; essa é sua grande alegria e seu grande objetivo existencial.
Eu, que não sou Jainista, e faço práticas de intervenção na natureza para satisfazer minhas fantasias de viver próximo a ela, e meus desejos de viver uma vida mais simples, bebendo de fonte e comendo da horta, vou levando a vida com essa resignação quase religiosa de ter que matar para viver. Ainda bem que conto com Vania, que chega a ser ainda mais assombrada que eu pelas dores dos bichinhos que insistem em viver no mesmo espaço que nós. Assim, a dois, fica mais fácil exercer a loucura de viver da morte. Que não se assustem, bichos e gente, se um dia desses nos virem nus com uma destas máscaras de gaze jainistas, andando em câmera lenta, pelos bosques da serra do Cervo, com os olhos semicerrados, para não ferir algum ser voador, ao piscar. Não adianta nos internar que somos incorrigíveis!!