Adeus Serra do Cervo!

Você que lê este blog já me viu desistir de escrever nele uma outra vez, mas pelo motivo de não encontrar uma história que valesse a pena. Depois voltei atrás por saudades de falar de terra, de bichos e de meu estado de espírito nas serras. Bem, agora é definitivo! Não voltarei mais a este espaço para descrever minha lida pelas serras do Cervo, simplesmente porque não mais estarei por lá. Se vier a escrever sobre minha longa jornada por cada recanto daquele refúgio o será em outro blog, mas para dizer das saudades, reminiscências e imagens indeléveis desta vivência. Este blog será como uma árvore esquecida na retina do viajante em um trem que dispara pelo campo. Ou como mais uma lápide no grande cemitério da web. Grato àqueles que me brindaram com sua leitura. Antes de fechar de vez este espaço farei uma última blogagem, em respeito aos que me seguem. Manterei, limitadamente, o blog http://levileonel.blogspot.com

segunda-feira, 15 de julho de 2013

Éramos dezessete!

        Os olhinhos vivazes e curiosos de Kelly, Meg, Castor, Rabicho e Soneca me acompanham conduzindo Bob para a pickup. Bob me olha e faz o que sabe fazer de melhor. Dá pequenos saltos e encosta feliz em minha perna, balançando o rabo como um estandarte. Convido-o a subir no carro e o amarro cuidadosamente na tralha traseira para evitar acidentes. Ele o faz sem resistir. Não sabe que duro golpe seu amigo lhe dará. Estou sozinho nesta empreita. Vania está há dois dias viajando e só voltará dali dois dias. Está é uma conversa entre eu e Bob - a última conversa de nossas vidas.
Bob e a amiga Ênia 
         06:40h, 06 de julho de 2013. Faz muito frio - mais ou menos 7 graus no alto da serra. Os vidros do carro estão embaçados. Nossas respirações logo se condensam graciosamente em vapores que seguem o regime dos ventos cortantes que deslizam por entre pinheiros que nos circundam. Aqueles mesmos pinheiros que plantei com Vania, pequenos filhotes de árvore, que hoje são gigantes a nos espreitar, silvando lá do alto. Enquanto vou ajeitando o amigo, penso que nossas existências estavam unidas pela mesma sina. Tanto ele como eu sonháramos morrer naquelas paragens. Na verdade eu sonhava isso por ele. De qualquer modo isso não era mais verdade. Nós dois estávamos deixando a Serra do Cervo. Eu ainda voltaria lá para assentar de vez minha retirada; ele para nunca mais.
          Bob estava ansioso por dar um passeio e capto seu olhar para as árvores e a serra. Penso, por um instante, que se tudo der certo, se esta pequena viagem até a praça central da cidade for um sucesso, ele nunca mais verá esta paisagem. Esse pensamento me contrai o peito e me dá um pouco de vergonha. Ia deixar o amigo na barraca de adoção aos cuidados de Alessandra Soares, da Ong Voluntários da Pata.
          No sábado anterior, a pedido de Vania eu já fizera o mesmo trajeto emocional na tentativa de doá-lo e agora já podia conter as lágrimas, como manda o figurino da existência: não se sofre com a mesma intensidade duas vezes o mesmo fato. Se naquele sábado eu estava trêmulo e cada pessoa que o afagava me fazia mais um nó na garganta, agora me sentia mais seguro que este era o melhor destino ao querido Bob. A convivência com outros machos lhe impunha um confinamento cruel e que não era digno dele. Na verdade, desde sempre, de um modo ou de outro, eu sabia que nossa casa na serra era uma passagem para ele. Mas, não achava que o era para mim, pelos menos até recentemente. Ingenuidade e prepotência minha frente a frivolidade da existência.
          Aciono o carro. São 07:20. Desço lentamente a estrada, passo pela entrada e o aperto no coração reaparece. Admito para mim que estou ressentindo outras separações. Também eu estava me despedindo da serra que tanto amava; dos sonhos e fantasias que aqueci no peito e na mente. Fecho o portão com fraqueza de espírito, como se por baixo da pele houvesse somente o vapor daquela manhã, descolado das árvores e da terra. Olho para Bob e ele retribui sem compreender. Talvez se perguntasse por qual motivo não podia sair dali e correr pelos pastos do Sr. Antonio, pelas estradas do Catiguá. Porque seu amado amigo mudara o ritual que tanto gostava?
          Como um corisco me passa pela mente nossa história de amor. Tudo começou quando tive que fazer os cuidados médicos, com injeções e cuidados na pele, depois dele ter sido resgatado em condições físicas dramáticas. Vania estava lá e pode contar com detalhes. Dotado de grande saúde e ânimo de vida, logo sarou, cicatrizou e sua pelagem adquiriu um brilho especial. Aprendeu os comandos básicos de ir para casa e ficar no canil, quando isso era necessário. também adotou quase que imediatamente seu novo nome. Não precisou mais que alguns dias para atender por Bob, como se houvesse nascido Bob. Sempre soube que ele não era cão abandonado, o clássico cachorro de rua; era um cão fugitivo - e não por maus tratos. Suas chagas eram, claramente, o resultado de combates por um provável cio de fêmea.
          Fomos para a praça Senador José Bento. Dirigi devagar para não congelá-lo no denso nevoeiro que se formava ao rés da serra, na calha do Rio Cervo. Tive pouco mais de 20 minutos para repassar as décadas que vivi nos bosques, que eu mesmo planteie, e na curta, porém intensa amizade pelo Bob. Quando ele chegou por aquelas paisagens tudo que verdejava tinha os vestígios de quatro mãos; ele fruía sem culpas essa nossa dedicação.
Bob e se amigo Soneca em casa
          08:00h. Levei Bob comigo a outra praça, desta vez a João Pinheiro, onde ministrei a costumeira aula de taichi indiano. Desci-o do carro evitando que se sentisse abandonado e o amarrei em uma corda longa para que esticasse as pernas. Ele tremia mais de emoção do que de frio. Permaneceu longo tempo com as patas cruzadas sem tirar os olhos de mim. Pensei que nossa hora estava chegando. Voltamos para a praça Senador José Bento. Quem nos recebeu foi Alessandra Soares; lhe entrego Bob que colava em minhas pernas como se dissesse: "Na dúvida, onde você for eu vou". Amarro-o em um banco, me sento na guia do jardim e ele recosta o rosto em minhas pernas. Beijo-lhe embaixo dos olhos, beijo-lhe a cabeça e mergulho o rosto na pelagem entre orelhas e pescoço e inspiro profundamente o perfume abaixo de suas orelhas. "Bob, eu vou ali, mas já volto. Você vai ficar muito bem. Tudo vai dar certo. Papai precisa trabalhar, mas não vai lhe deixar" menti para mim mesmo, com os olhos ardendo. Sabia que seria muito difícil vê-lo outra vez. Tinha que trabalhar o dia todo, e depois iria a SP, para onde me mudaria. Bob não tinha como saber disso e me olhou preocupado quando me afastei e fez menção de latir, mas depois calou. "Pode deixar que eu cuido dele", disse Alessandra. Não consegui responder.
          14:40h. Andréa Carvalho, que pretendia conhecer Bob para apresenta-lo à Bombom, uma cadela já bem senhora, me liga dizendo que eu ia ter uma surpresa e tanto, ao voltar à praça. Só podia dizer que era algo incrível. Logo imaginei que tinha a ver com o meu amigo. Mais tarde fui até lá.
          Alessandra imediatamente me conta que os donos do Bob o reconheceram e o haviam levado para casa. Um homem jovem veio trazer alguns filhotes que nasceram de uma cadela que fugira do seu canil. O inusitado é que Bob fugira junto com ela, que por sua vez estava no cio (os filhotes em sua mão eram o produto dessa fuga e as chagas do cão, produto dessa aventura!). Contou ainda que naquele dia em que Bob foi resgatado, sua esposa o vira pouco antes e foi buscar ajuda; este desencontro de minutos resultou nesta história de amor. Disse ainda que o nome do cão era "Sossego". O nó na garganta quase me impede de perguntar se Bob os reconhecera. A resposta de Alessandra e as fotos que vi selaram minhas dúvidas - meu Bob encontrara seus primeiros amores. Agora estava acabado para nós. A chance de nos encontrarmos de novo era remota. Algum recanto em mim, feito de uma mole substância, se alegrava ainda assim. Ele ia ter uma vida bem melhor que aquela que podia oferecer-lhe.
          Uma semana depois, daqui de São Paulo, fico imaginando ele rindo, com aqueles dentões, seduzindo seus amigos humanos para dar uma volta pelas praças e ruas. Sei que meu cheiro ficará em sua memória por muito e muito tempo. E que sua imagem povoará meu espírito até que as manhãs do futuro ofusquem tudo que é vivo. Afinal ainda guardo indeléveis as imagens do Nhenhéu, Bolinha, Lili e Kendi, cães de minha primeira infância; e o que dizer da Zefata, Pinhata e Mariata, as primeiras gatas de minha vida?.
          É bem possível que este seja o destino de Bob. Morar nos céus do coração destes humanos que passaram e passarão por sua vida. Um belo destino, afinal.
          Em tempo:
          Para mim ele se chamará sempre Bob, mas concordo, secretamente, em chamá-lo Bob Sossego. E não se fala mais nisso!

sábado, 26 de janeiro de 2013

A vida vive da morte!

Quanto mais conforto exigimos mais violência praticamos.
Entre leituras sobre psicanálise, a leitura de “O muro” e a preparação do Ateliê do Corpo, me dediquei, neste recesso – que incluiu Natal e Réveillon – a uma reforma da estrada que liga o portão à minha casa. Num certo ponto de uma curva, depois de quase duas décadas sem manutenção, a estradinha estava pior que as ruínas do Coliseu. Foi um teste de paciência, contemplação e engenho, uma vez que reformar é sempre mais complicado do que construir.
Primeiro, carpi o mato e capim que invadiram o leito dos bloquetes; a enxada não pode escavar mais que o suficiente para retirar os bloquetes senão eles ficam ao res do chão e saem flutuando com a primeira chuva forte, destas que grassam por janeiros e fevereiros. Dois centímetros de carpida no máximo. Há um outro objetivo menos, digamos, técnico para carpir tão pouco: muitas minhocas se aproximam das raízes de braquiária e outros capins e ervas daninhas, por causa do oxigênio e matérias orgânicas em decomposição. Aí é que mora o perigo. Quase sempre estão à mercê do fio da lâmina, a não ser que, com muita prática, enfiemos o canto da enxada puxando a planta mais do que cortando. Com isso salvamos a maioria delas de uma decepa cruel.
Às vezes, enquanto enxugava o suor que encharcava boné, camisas, calças e sapatos, parava para meditar o quanto viver é mortal. Pense comigo: sem reassentar os bloquetes no seu lugar original, não consigo subir de carro a serra até minha casa. Daí que, por causa de minha comodidade, e por mais que cuide das minhocas, muitas perecem dolorosamente sob a lâmina da enxada. E não apenas elas, mas também, larvas de besouros, formigas diversas e insetos dos quais não imagino o nome. Perturbo todo o andamento da vida por onde me meto a cuidar da minha vida.
Viver mata. Numa das touceiras de braquiária a lâmina cortou em quatro pedaços um belíssimo espécime de cobra insetívora com pouco mais de dois palmos de comprimento. Demorou meses e meses a chegar à vida adulta, que coloquei termo de um golpe. Noutro monturo de folhas um pequeno sapo foi dilacerado. Uma perda irreparável para a serra, para o mundo, para mim. Na maioria das vezes gasto mais tempo que o usual, salvando pequenos seres da agressividade do meu viver. Como exemplo corriqueiro, quando vou colocar as peças de cimento no seu devido lugar fico esperando as formigas saírem de baixo e mantenho, seguro pelos dedos e com esforço dobrado na espinha, os pesados bloquetes a alguns centímetros do solo. O esforço é grande e às vezes, no auge do cansaço, apoio a peça na perna e com delicadeza empurro, com pequenos piparotes, um ou mais insetos para fora da cava onde o encaixarei. Isso demanda muito mais tempo, energia e sofrimento emocional, pois não acho que tenho mais direitos de viver ali do que eles. Mas, mesmo pesando a nosso (meu e deles) alguns sucessos, o fato é que as vezes falho fragorosamente esmagando inapelavelmente os pequeninos seres.
Daí que o mais comezinho ato de existir encerra rivalidade, competição e letalidade. Ao podar  as árvores que atrapalham a passagem de meu carro, se o faço com pena, ainda assim, o faço. No meu caso com dupla crueldade, pois não sou daqueles que acham que um deus criou o mundo para deleite do homem – o rei da criação. Na verdade não acho que sou mais importante que qualquer grilo ou minhoca, pássaro ou mamífero que por aqui vicejam. Mas, a sofisticação das técnicas de existir me fazem um predador cujo status é o pináculo da cadeia alimentar. Isso seria um nadinha de nada, se eu pudesse seguir existindo sob as leis da natureza, ou seja, com o mais forte comendo o mais fraco. Mas, com a perversidade de minhas práticas nada naturais para existir, acabo subvertendo estas leis simples e bem tramadas. Então, me resta seguir adiante tentando mexer o menos possível com esse delicado equilíbrio de forças, uma vez que minha prática como a de qualquer outro humano é cínica; dizemos: eu sei, mas ainda assim...
Sempre que penso na violência de viver acabo me lembrando dos Jainas – um grupo religioso na Índia, que leva muito a sério a não violência contra qualquer vida. Eles se dividem em duas seitas – Shvetambara e Digambara. Os últimos, a meu ver, são mais radicais: andam despidos e não fazem mal a qualquer vida, estendendo sua atitude até para com os seres vivos microscópicos. Assim, andam com um lenço de linho cobrindo boca e narinas para filtrar o ar e poupar os seres que vivem flutuando a nossa volta. Um esforço supremo que torna suas vidas muito difíceis, uma vez que, ao que me parece, quanto mais conforto na vida, mais violência é necessária para mantê-lo. Não é o caso do Jaina, que vive fazendo o menor mal possível ao mundo. Por isso vivem uma vida impressionantemente ascética e, por isso mesmo, muito, muito precária. Seu único conforto, e só o que querem para si, é o de respeitar a vida; essa é sua grande alegria e seu grande objetivo existencial.
Eu, que não sou Jainista, e faço práticas de intervenção na natureza para satisfazer minhas fantasias de viver próximo a ela, e meus desejos de viver uma vida mais simples, bebendo de fonte e comendo da horta, vou levando a vida com essa resignação quase religiosa de ter que matar para viver. Ainda bem que conto com Vania, que chega a ser ainda mais assombrada que eu pelas dores dos bichinhos que insistem em viver no mesmo espaço que nós. Assim, a dois, fica mais fácil exercer a loucura de viver da morte. Que não se assustem, bichos e gente, se um dia desses nos virem nus com uma destas máscaras de gaze jainistas, andando em câmera lenta, pelos bosques da serra do Cervo, com os olhos semicerrados, para não ferir algum ser voador, ao piscar. Não adianta nos internar que somos incorrigíveis!!
   

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Maritacas, máscaras de papelão e Winnicott!

Aqui Dino está exausto de um dia de trabalho voando
pelos bosques. Note o papelão como máscara na
entrada de sua casinha!
Já falei do Dino por aqui. Ser misterioso, que vive numa fímbria entre humano e bicho, usando o melhor de dois mundos - a comida e casa humana, bem como árvores plantadas há duas décadas para fazer um grande bosque. Nas horas do café da manhã, do almoço e do jantar, Dino usa pratos, talheres, xícaras e panelas, para fincar seus pés cheios de dedos e unhas finas e afiadas, enquanto devora biscoitos maria e pedaços de sanduíche de cereais integrais com um pouco de queijo imersos em café orgânico.
Ao fundo parte do bosque plantado para nossos prazeres
e agora tomado pelo Dino e seus asseclas (um monte de
amiguinhos e amiguinhas aparecem, diariamente,
para lanchar o conteúdo de seus comedouros)!
Dino é um destes seres que tiveram o destino atravessado por humanos e que daí em diante só fazem sentido misturados com eles.
Esse serzinho verde foi criado em caixas de papelão em seus primeiros dias, e depois, se negava terminantemente a se mudar para essa de madeira. Não conseguia reconhecer a portinhola que tanto amava! Daí, Vania lembrou e bateu para o psicanalista aqui, Winnicott, com sua teoria dos "objetos transicionais" - aquelas chupetas, paninhos, bichinhos de pelúcia e outros objetos que representam a mãe para os bebês humanos. Porque não fazer uma máscara de papelão e colar na entrada da casinha de madeira? Fizemos e funcionou imediatamente! Dino olhou para a máscara de papelão, emitiu alguns pios muito diferentes, gargalhou, como só as maritacas fazem e, entrou, bamboleando sobre as perninhas cor grafite, em sua amada caixa de "papelão". A aplicação da teoria ficou meio estapafúrdia, mas o que importa é que o Dino aprovou!
O bichinho descansando à sombra da área coberta numa
tarde sol de inverno!

sábado, 30 de junho de 2012

Ainda o outono!

O outono oficial já terminou há alguns dias. É uma meia estação, dizem. Mas entre outono e inverno creio que há uma estação que medeia, que fica entre uma e outra; uma estaçãozinha em que reconhecemos os olhos de uma e o nariz da outra. Bem, o que quero dizer é que atrasei em blogar o texto abaixo e estou justificando-me. Acho que ainda há algo de outono neste inverno e isso me dá a deixa... pois,

"Penso as chuvas de outono como aquelas últimas águas que ficaram atrasadas para um encontro com suas parceiras em outras terras do mundo. São irmãs, primas, sobrinhas e filhas nascidas daquelas chuvas grandes, adultas, que passaram por aqui entre novembro e fevereiro. Essas mães das chuvas de março e abril, começaram densas e cálidas, nas festas de fim de ano, apresentando-se familiares em dezembro e fazendo carnaval no início de março. Seu humor variava extraordinariamente; ia do complacente à fúria em poucos minutos, deixando confusa a platéia - por acaso eu e Vania, mas que bem poderia ser um sabiá, uma gralha ou um cervo; as saúvas, os cães ou as siriemas; ou ainda vacas, urubus e tizius. Agora a calma das manhãs e tardes outonais são menos sistematicamente interrompidas pelas chuvas. O sol fulgurando no céu azulado é esfriado por uma brisa seca que facilmente se transforma em vento cortante - mais pelo frio do que pela velocidade.  
Tentando não assustar o chen-chen que pousou na cumeeira da casa, interrompo a leitura e vou buscar descanso para os olhos na paisagem ao longe. A tarde chega e ainda posso ver casinhas banhadas pelas últimas luzes solares, encravadas em vãos de vales ao longo do Rio do Cervo. Não posso controlar a sensação de que estou morando em um ninho da mãe-terra, tal qual qualquer outro ser vivo no dorso desta serra. Um sentimento inominável corre por dentro. Solenidade, sacralidade, medo mítico, amor filial?
Bom, meus olhos pesam e começo a desejar o conforto do sono. Daqui em diante fica por conta dos lobos, corujas, curiangos, morcegos e grilos vigiarem para que tudo aconteça como ontem e o sol possa ser ajudado em seu levante preguiçoso daqui a horas. Eu já fiz minha parte". (Escrito em 2003)

terça-feira, 29 de maio de 2012

Outono, Dino e outros bichos!



O Outono já vai limpando com sua vassoura de vento os vestígios do verão e ouço na serra o ronronar das árvores farfalhando, eriçadas pelas mãos insinuantes do vento sul à tarde e noite. De madrugada o sopro vem do norte e passa por sobre nossas cabeças indo ter com o vale lá embaixo. Os ciprestes já mostram seu amarelecimento feito de milhões de pequenas sementes que vão secando e lhe dando o tom dourado ao Sol. Dependuradas de cabeça para baixo, presas por garras finas e fortes aos galhos rústicos, vejo maritacas, periquitos e tirivas quebrando-as, uma a uma, num trabalho paciente que não sei dizer se se trata de comê-las ou apenas um exercício do bico.
Talvez apenas brinquem com as sementes dos ciprestes! A prova pode ser as gargalhadas que dão zombando de minha ignorância. Olham para mim com seus olhinhos negros, torcem a cabecinha verde e falam num idioma que não conheço, mas que, certamente, estão me colocando na pauta de gozação do dia...
Depois voam brilhando seu verde azulado com matizes de amarelo e vermelho sob os raios solares que incidem sobre sua penugem bem penteada.
Às vezes ouço uma vozinha esganiçada vinda do milharal e tenho certeza de que se trata do Dino, que apresentei na última blogagem... Bem, Vania  e eu chamávamos aquela maritaca por "Dino", para nos referir ao Dino da Silva Sauro, da tevê. Entretanto, para nosso constrangimento, um especialista nos disse que se trata de uma "Dina", pois suas penas não são tão coloridas quanto as dos machos. O que será dela que tratamos como macho?! Acabará tendo que conversar com um especialista para encontrar sua verdadeira identidade? Só o deus das maritacas para interceder por ela...
Sim! O Dino, quero dizer, a Dina, já escapuliu e voou de casa, ganhando mundo. De vez em quando, assustado (desculpe! assustada) aparece para comer umas guloseimas humanas, como pão integral e queijo, voando para seu destino em seguida. Bem, às vezes dorme em casa, pois a Dina experimentou esta loucura que é a casa humana e os afagos de Vania em seu redondo bico e macias penas... E adorou!
Enquanto isso, lá fora, nos ciprestes, o mundo das maritacas anda no ritmo de sua religião, fruindo das benesses de mais um outono ofertado por seus deuses. E eu aqui, invejado de suas certezas...

Pos scriptum: Esses prazeres de conhecer o Dino só foram possíveis pelo carinho do Gideon, aquele do Posto Bambuí, que teve o desprendimento de nos trazer a maritaquinha que embevece Vania na foto acima. A história é a seguinte: o Dino caiu da caixa d'água sobre sua tevê; por um dia e meio ele cuidou do filhotinho e depois trouxe a nós para que cuidássemos dele. Nada sabemos dos pais de Dino, um órfão que seu deu muito bem! A começar pelo próprio Gideon que permitiu que o bichinho podia ficar conosco... O Gideon é aquele mesmo que um dia nos trouxera a Gigi, que contei a história mais abaixo. Grande sujeito...
      


terça-feira, 15 de maio de 2012

Chegou a hora de dar mais um passo e...

...investir mais energia na construção final do Centro Vivencial Rural (o Ashram Rural, para os conhecidos), herdeiro do "ashram" de São Paulo.Venderei uma parte da serra que cuidei nos últimos 18 anos, plantando em grande parte e outra deixando-a por conta de si mesma virando mata e tornando-a ecologicamente sustentável.  Gostaria de ter vizinhos que se afinam com esses pensamentos; por isso, deixo aqui o link para maiores informações. De vez em quando colocarei mais imagens do local. Se não lhe interessa, por favor envie a alguém que possa gostar da ideia.
http://vende-sechacaras.blogspot.com.br/2012/05/construa-seu-refugio-no-alto-da-serra.html

domingo, 11 de março de 2012

Gigi e Dino, mais duas histórias de pássaros!


Dezessete anos depois de incluirmos em nossas vidas as preocupações usuais com um sítio, ou, como se diz por aqui, a roça, nossas histórias com a turma alada já se tornou uma lista infindável. Assim, Gigi, uma pomba e Dino uma maritaca, são apenas mais dois exemplos de relações assimétricas, quero dizer, nós cuidamos e eles são cuidados - simples assim. O que primeiro chama a atenção é o desamparo inicial desses pequenos seres que nada deve ao bebê humano. Ambos só podem existir na máxima dependência, alimentados com diligência, por uma mãe (às vezes por um casal que se forma para esse fim) que deposita ou oferece alimento fomentador de energia com a qual um industria penas à espera do florescimento dos instintos, o outro cria uma mente, um corpo expressivo e outros prodígios da espécie humana. 
O primeiro fará do voo talvez sua característica fundamental, o segundo terá no desejo um voo com poucas penas e, com isso, voa feio, inseguro e sem direção precisa. O primeiro funda-se em si mesmo, sem diferença entre o que necessita e o que obtém. O segundo funda-se no outro e deseja o que não pode obter.
A Gigi, uma esbelta pomba citadina - na foto olhando com muita curiosidade o que se passa fora dos poucos metros do consultório, sua moradia provisória - tornou-se uma presença inolvidável, com seus arrulhos e sisudez. Suas penas ainda estão se fortalecendo, mas já arrisca um voo circular que vai até a cabeça de algum transeunte e de volta à janela segura, onde Vania a espera com papinhas e outros acepipes. À noite dorme sobre um pequeno baú de madeira que escolheu entre muitos outros lugares para pouso. De vez em quando, pousa sobre meus ombros para descansar de seu curto passeio pelas redondezas, enquanto digito qualquer coisa.
Já nos preocupa o que será de uma pombinha que não tem a vivência daquelas criadas por mães nos telhados das casas e iniciadas na malícia de fugir dos carros, gatos e cachorros - além de uns meninos e adultos que atiram-lhes o que tem à mão para causar-lhes dor. Preocupações de pais, embora postiços. Entre muitas aflições, questionamos se a soltaremos no horto, na cidade, ou no campo. No campo encontrará as majestosas pombas do ar, que não terão nenhum prurido em a expulsar das redondezas (especialmente se a Gigi for "o" Gigi!). No horto e na cidade parece que ela vai enfrentar relações com gente, que pode não achar nenhuma graça num pássaro descendo do céu sobre sua cabeça... além disso,  não teme seus predadores!
Anteontem um vizinho nos trouxe o Dino um filhote de maritaca, que tudo indica deverá nos dar as mesmas dores de cabeça. Vania decidiu que é macho, porque, como diz ela, são todos carentes, folgados e exigentes. Creio que ela tem razão sobre os machos; e o Dino só pode ser um deles! Note-se que a pomba Gigi chegou até nós depois de ter sido abandonada numa caixa com outro filhote já morto, numa tarde de sábado, anunciando uma tempestade. Naquele momento estava nas condições do Dino no filme acima; sem penas, com o bico mal formado e com uma fome de doer.
Ps.: A propósito da última blogagem "Ninho Vazio", agora nós estamos passando pela esquisita sensação de esperar a Gigi, que não volta para casa faz vinte e quatro horas. Dizem os vizinhos que a viram com outros três pombos em cima de nosso prédio. Conservamos o pequeno baú que lhe serviu de poleiro lá no lugar que escolheu e deixamos a janela aberta, na eventualidade de querer nos visitar e comer queijos, que tanto adora.