Adeus Serra do Cervo!

Você que lê este blog já me viu desistir de escrever nele uma outra vez, mas pelo motivo de não encontrar uma história que valesse a pena. Depois voltei atrás por saudades de falar de terra, de bichos e de meu estado de espírito nas serras. Bem, agora é definitivo! Não voltarei mais a este espaço para descrever minha lida pelas serras do Cervo, simplesmente porque não mais estarei por lá. Se vier a escrever sobre minha longa jornada por cada recanto daquele refúgio o será em outro blog, mas para dizer das saudades, reminiscências e imagens indeléveis desta vivência. Este blog será como uma árvore esquecida na retina do viajante em um trem que dispara pelo campo. Ou como mais uma lápide no grande cemitério da web. Grato àqueles que me brindaram com sua leitura. Antes de fechar de vez este espaço farei uma última blogagem, em respeito aos que me seguem. Manterei, limitadamente, o blog http://levileonel.blogspot.com

segunda-feira, 15 de julho de 2013

Éramos dezessete!

        Os olhinhos vivazes e curiosos de Kelly, Meg, Castor, Rabicho e Soneca me acompanham conduzindo Bob para a pickup. Bob me olha e faz o que sabe fazer de melhor. Dá pequenos saltos e encosta feliz em minha perna, balançando o rabo como um estandarte. Convido-o a subir no carro e o amarro cuidadosamente na tralha traseira para evitar acidentes. Ele o faz sem resistir. Não sabe que duro golpe seu amigo lhe dará. Estou sozinho nesta empreita. Vania está há dois dias viajando e só voltará dali dois dias. Está é uma conversa entre eu e Bob - a última conversa de nossas vidas.
Bob e a amiga Ênia 
         06:40h, 06 de julho de 2013. Faz muito frio - mais ou menos 7 graus no alto da serra. Os vidros do carro estão embaçados. Nossas respirações logo se condensam graciosamente em vapores que seguem o regime dos ventos cortantes que deslizam por entre pinheiros que nos circundam. Aqueles mesmos pinheiros que plantei com Vania, pequenos filhotes de árvore, que hoje são gigantes a nos espreitar, silvando lá do alto. Enquanto vou ajeitando o amigo, penso que nossas existências estavam unidas pela mesma sina. Tanto ele como eu sonháramos morrer naquelas paragens. Na verdade eu sonhava isso por ele. De qualquer modo isso não era mais verdade. Nós dois estávamos deixando a Serra do Cervo. Eu ainda voltaria lá para assentar de vez minha retirada; ele para nunca mais.
          Bob estava ansioso por dar um passeio e capto seu olhar para as árvores e a serra. Penso, por um instante, que se tudo der certo, se esta pequena viagem até a praça central da cidade for um sucesso, ele nunca mais verá esta paisagem. Esse pensamento me contrai o peito e me dá um pouco de vergonha. Ia deixar o amigo na barraca de adoção aos cuidados de Alessandra Soares, da Ong Voluntários da Pata.
          No sábado anterior, a pedido de Vania eu já fizera o mesmo trajeto emocional na tentativa de doá-lo e agora já podia conter as lágrimas, como manda o figurino da existência: não se sofre com a mesma intensidade duas vezes o mesmo fato. Se naquele sábado eu estava trêmulo e cada pessoa que o afagava me fazia mais um nó na garganta, agora me sentia mais seguro que este era o melhor destino ao querido Bob. A convivência com outros machos lhe impunha um confinamento cruel e que não era digno dele. Na verdade, desde sempre, de um modo ou de outro, eu sabia que nossa casa na serra era uma passagem para ele. Mas, não achava que o era para mim, pelos menos até recentemente. Ingenuidade e prepotência minha frente a frivolidade da existência.
          Aciono o carro. São 07:20. Desço lentamente a estrada, passo pela entrada e o aperto no coração reaparece. Admito para mim que estou ressentindo outras separações. Também eu estava me despedindo da serra que tanto amava; dos sonhos e fantasias que aqueci no peito e na mente. Fecho o portão com fraqueza de espírito, como se por baixo da pele houvesse somente o vapor daquela manhã, descolado das árvores e da terra. Olho para Bob e ele retribui sem compreender. Talvez se perguntasse por qual motivo não podia sair dali e correr pelos pastos do Sr. Antonio, pelas estradas do Catiguá. Porque seu amado amigo mudara o ritual que tanto gostava?
          Como um corisco me passa pela mente nossa história de amor. Tudo começou quando tive que fazer os cuidados médicos, com injeções e cuidados na pele, depois dele ter sido resgatado em condições físicas dramáticas. Vania estava lá e pode contar com detalhes. Dotado de grande saúde e ânimo de vida, logo sarou, cicatrizou e sua pelagem adquiriu um brilho especial. Aprendeu os comandos básicos de ir para casa e ficar no canil, quando isso era necessário. também adotou quase que imediatamente seu novo nome. Não precisou mais que alguns dias para atender por Bob, como se houvesse nascido Bob. Sempre soube que ele não era cão abandonado, o clássico cachorro de rua; era um cão fugitivo - e não por maus tratos. Suas chagas eram, claramente, o resultado de combates por um provável cio de fêmea.
          Fomos para a praça Senador José Bento. Dirigi devagar para não congelá-lo no denso nevoeiro que se formava ao rés da serra, na calha do Rio Cervo. Tive pouco mais de 20 minutos para repassar as décadas que vivi nos bosques, que eu mesmo planteie, e na curta, porém intensa amizade pelo Bob. Quando ele chegou por aquelas paisagens tudo que verdejava tinha os vestígios de quatro mãos; ele fruía sem culpas essa nossa dedicação.
Bob e se amigo Soneca em casa
          08:00h. Levei Bob comigo a outra praça, desta vez a João Pinheiro, onde ministrei a costumeira aula de taichi indiano. Desci-o do carro evitando que se sentisse abandonado e o amarrei em uma corda longa para que esticasse as pernas. Ele tremia mais de emoção do que de frio. Permaneceu longo tempo com as patas cruzadas sem tirar os olhos de mim. Pensei que nossa hora estava chegando. Voltamos para a praça Senador José Bento. Quem nos recebeu foi Alessandra Soares; lhe entrego Bob que colava em minhas pernas como se dissesse: "Na dúvida, onde você for eu vou". Amarro-o em um banco, me sento na guia do jardim e ele recosta o rosto em minhas pernas. Beijo-lhe embaixo dos olhos, beijo-lhe a cabeça e mergulho o rosto na pelagem entre orelhas e pescoço e inspiro profundamente o perfume abaixo de suas orelhas. "Bob, eu vou ali, mas já volto. Você vai ficar muito bem. Tudo vai dar certo. Papai precisa trabalhar, mas não vai lhe deixar" menti para mim mesmo, com os olhos ardendo. Sabia que seria muito difícil vê-lo outra vez. Tinha que trabalhar o dia todo, e depois iria a SP, para onde me mudaria. Bob não tinha como saber disso e me olhou preocupado quando me afastei e fez menção de latir, mas depois calou. "Pode deixar que eu cuido dele", disse Alessandra. Não consegui responder.
          14:40h. Andréa Carvalho, que pretendia conhecer Bob para apresenta-lo à Bombom, uma cadela já bem senhora, me liga dizendo que eu ia ter uma surpresa e tanto, ao voltar à praça. Só podia dizer que era algo incrível. Logo imaginei que tinha a ver com o meu amigo. Mais tarde fui até lá.
          Alessandra imediatamente me conta que os donos do Bob o reconheceram e o haviam levado para casa. Um homem jovem veio trazer alguns filhotes que nasceram de uma cadela que fugira do seu canil. O inusitado é que Bob fugira junto com ela, que por sua vez estava no cio (os filhotes em sua mão eram o produto dessa fuga e as chagas do cão, produto dessa aventura!). Contou ainda que naquele dia em que Bob foi resgatado, sua esposa o vira pouco antes e foi buscar ajuda; este desencontro de minutos resultou nesta história de amor. Disse ainda que o nome do cão era "Sossego". O nó na garganta quase me impede de perguntar se Bob os reconhecera. A resposta de Alessandra e as fotos que vi selaram minhas dúvidas - meu Bob encontrara seus primeiros amores. Agora estava acabado para nós. A chance de nos encontrarmos de novo era remota. Algum recanto em mim, feito de uma mole substância, se alegrava ainda assim. Ele ia ter uma vida bem melhor que aquela que podia oferecer-lhe.
          Uma semana depois, daqui de São Paulo, fico imaginando ele rindo, com aqueles dentões, seduzindo seus amigos humanos para dar uma volta pelas praças e ruas. Sei que meu cheiro ficará em sua memória por muito e muito tempo. E que sua imagem povoará meu espírito até que as manhãs do futuro ofusquem tudo que é vivo. Afinal ainda guardo indeléveis as imagens do Nhenhéu, Bolinha, Lili e Kendi, cães de minha primeira infância; e o que dizer da Zefata, Pinhata e Mariata, as primeiras gatas de minha vida?.
          É bem possível que este seja o destino de Bob. Morar nos céus do coração destes humanos que passaram e passarão por sua vida. Um belo destino, afinal.
          Em tempo:
          Para mim ele se chamará sempre Bob, mas concordo, secretamente, em chamá-lo Bob Sossego. E não se fala mais nisso!

sábado, 26 de janeiro de 2013

A vida vive da morte!

Quanto mais conforto exigimos mais violência praticamos.
Entre leituras sobre psicanálise, a leitura de “O muro” e a preparação do Ateliê do Corpo, me dediquei, neste recesso – que incluiu Natal e Réveillon – a uma reforma da estrada que liga o portão à minha casa. Num certo ponto de uma curva, depois de quase duas décadas sem manutenção, a estradinha estava pior que as ruínas do Coliseu. Foi um teste de paciência, contemplação e engenho, uma vez que reformar é sempre mais complicado do que construir.
Primeiro, carpi o mato e capim que invadiram o leito dos bloquetes; a enxada não pode escavar mais que o suficiente para retirar os bloquetes senão eles ficam ao res do chão e saem flutuando com a primeira chuva forte, destas que grassam por janeiros e fevereiros. Dois centímetros de carpida no máximo. Há um outro objetivo menos, digamos, técnico para carpir tão pouco: muitas minhocas se aproximam das raízes de braquiária e outros capins e ervas daninhas, por causa do oxigênio e matérias orgânicas em decomposição. Aí é que mora o perigo. Quase sempre estão à mercê do fio da lâmina, a não ser que, com muita prática, enfiemos o canto da enxada puxando a planta mais do que cortando. Com isso salvamos a maioria delas de uma decepa cruel.
Às vezes, enquanto enxugava o suor que encharcava boné, camisas, calças e sapatos, parava para meditar o quanto viver é mortal. Pense comigo: sem reassentar os bloquetes no seu lugar original, não consigo subir de carro a serra até minha casa. Daí que, por causa de minha comodidade, e por mais que cuide das minhocas, muitas perecem dolorosamente sob a lâmina da enxada. E não apenas elas, mas também, larvas de besouros, formigas diversas e insetos dos quais não imagino o nome. Perturbo todo o andamento da vida por onde me meto a cuidar da minha vida.
Viver mata. Numa das touceiras de braquiária a lâmina cortou em quatro pedaços um belíssimo espécime de cobra insetívora com pouco mais de dois palmos de comprimento. Demorou meses e meses a chegar à vida adulta, que coloquei termo de um golpe. Noutro monturo de folhas um pequeno sapo foi dilacerado. Uma perda irreparável para a serra, para o mundo, para mim. Na maioria das vezes gasto mais tempo que o usual, salvando pequenos seres da agressividade do meu viver. Como exemplo corriqueiro, quando vou colocar as peças de cimento no seu devido lugar fico esperando as formigas saírem de baixo e mantenho, seguro pelos dedos e com esforço dobrado na espinha, os pesados bloquetes a alguns centímetros do solo. O esforço é grande e às vezes, no auge do cansaço, apoio a peça na perna e com delicadeza empurro, com pequenos piparotes, um ou mais insetos para fora da cava onde o encaixarei. Isso demanda muito mais tempo, energia e sofrimento emocional, pois não acho que tenho mais direitos de viver ali do que eles. Mas, mesmo pesando a nosso (meu e deles) alguns sucessos, o fato é que as vezes falho fragorosamente esmagando inapelavelmente os pequeninos seres.
Daí que o mais comezinho ato de existir encerra rivalidade, competição e letalidade. Ao podar  as árvores que atrapalham a passagem de meu carro, se o faço com pena, ainda assim, o faço. No meu caso com dupla crueldade, pois não sou daqueles que acham que um deus criou o mundo para deleite do homem – o rei da criação. Na verdade não acho que sou mais importante que qualquer grilo ou minhoca, pássaro ou mamífero que por aqui vicejam. Mas, a sofisticação das técnicas de existir me fazem um predador cujo status é o pináculo da cadeia alimentar. Isso seria um nadinha de nada, se eu pudesse seguir existindo sob as leis da natureza, ou seja, com o mais forte comendo o mais fraco. Mas, com a perversidade de minhas práticas nada naturais para existir, acabo subvertendo estas leis simples e bem tramadas. Então, me resta seguir adiante tentando mexer o menos possível com esse delicado equilíbrio de forças, uma vez que minha prática como a de qualquer outro humano é cínica; dizemos: eu sei, mas ainda assim...
Sempre que penso na violência de viver acabo me lembrando dos Jainas – um grupo religioso na Índia, que leva muito a sério a não violência contra qualquer vida. Eles se dividem em duas seitas – Shvetambara e Digambara. Os últimos, a meu ver, são mais radicais: andam despidos e não fazem mal a qualquer vida, estendendo sua atitude até para com os seres vivos microscópicos. Assim, andam com um lenço de linho cobrindo boca e narinas para filtrar o ar e poupar os seres que vivem flutuando a nossa volta. Um esforço supremo que torna suas vidas muito difíceis, uma vez que, ao que me parece, quanto mais conforto na vida, mais violência é necessária para mantê-lo. Não é o caso do Jaina, que vive fazendo o menor mal possível ao mundo. Por isso vivem uma vida impressionantemente ascética e, por isso mesmo, muito, muito precária. Seu único conforto, e só o que querem para si, é o de respeitar a vida; essa é sua grande alegria e seu grande objetivo existencial.
Eu, que não sou Jainista, e faço práticas de intervenção na natureza para satisfazer minhas fantasias de viver próximo a ela, e meus desejos de viver uma vida mais simples, bebendo de fonte e comendo da horta, vou levando a vida com essa resignação quase religiosa de ter que matar para viver. Ainda bem que conto com Vania, que chega a ser ainda mais assombrada que eu pelas dores dos bichinhos que insistem em viver no mesmo espaço que nós. Assim, a dois, fica mais fácil exercer a loucura de viver da morte. Que não se assustem, bichos e gente, se um dia desses nos virem nus com uma destas máscaras de gaze jainistas, andando em câmera lenta, pelos bosques da serra do Cervo, com os olhos semicerrados, para não ferir algum ser voador, ao piscar. Não adianta nos internar que somos incorrigíveis!!