Adeus Serra do Cervo!

Você que lê este blog já me viu desistir de escrever nele uma outra vez, mas pelo motivo de não encontrar uma história que valesse a pena. Depois voltei atrás por saudades de falar de terra, de bichos e de meu estado de espírito nas serras. Bem, agora é definitivo! Não voltarei mais a este espaço para descrever minha lida pelas serras do Cervo, simplesmente porque não mais estarei por lá. Se vier a escrever sobre minha longa jornada por cada recanto daquele refúgio o será em outro blog, mas para dizer das saudades, reminiscências e imagens indeléveis desta vivência. Este blog será como uma árvore esquecida na retina do viajante em um trem que dispara pelo campo. Ou como mais uma lápide no grande cemitério da web. Grato àqueles que me brindaram com sua leitura. Antes de fechar de vez este espaço farei uma última blogagem, em respeito aos que me seguem. Manterei, limitadamente, o blog http://levileonel.blogspot.com

sábado, 30 de maio de 2009

Felicidade honesta!

“Felicidade honesta” é o que minha paciente acreditava ter conseguido ao final da análise de sua existência. Por minha vez acredito poder falar de alegria honesta – estes contentamentos que de quando em vez rutilam na clareira de nosso existir. Um deles bem pode ser o que Vania sentiu ao surpreender uma lebre silvestre andando pela estradinha de terra, ladeada de lichias, bouganvilles, eucaliptos e o milharal – que vai de nossa morada ao local em que realizarei as “Experiências de Ser”. Quase posso ver aquele serzinho solitário, andando desconfiado, estalando os cotovelos das patas traseiras ao andar; a cada pulinho um balanço mais ou menos desarvorado das longas orelhas cinzas; e, finalmente, assustado, batendo as patas traseiras no chão e desaparecendo no milharal em zigue-zague – que por sinal, é seu restaurante de forças diárias. Esse pequeno vivente, ocupado com sua tarefa de viver, sob o sol frio do outono só pode, ao olhar do humano que o vê, representar uma pitada de contentamento existencial – mais uma dose de combustão afetiva no correr de mais uns dias na serra.

Quase acabei “Leite Derramado”! Chico usa uma técnica já bem conhecida de sobrepor memória, por conseguinte, tempo, e consegue nos carregar até quase o final, é o momento em que estou, interessado na vida do Eulálio, sujeito já centenário, cuja memória falha constantemente em nos apresentar sua vida. O tempo – memória – é a substância que o estilo de um romancista modela e nos apresenta. No “Leite Derramado” o efeito é pungente, comovente, mas frustrante – talvez seja o objetivo de Chico. Frustrante, porque não podemos nos fiar em nada, não podemos acreditar no romance... Talvez o livro de Chico Buarque não seja um romance! Uma saga familiar é um épico e não um romance.

Ode ao Rio do Cervo!


ODE AO CERVO
Escrito em 18/01/2005 para a extinta ONG “KUMARI”,
que tinha se imposto como missão, entre muitas outras,
cuidar dos ribeiros e rios de Espírito Santo do Dourado.
As forças ideológicas da cidade não acolheram-na.

Da crista da serra pode-se divisar o Rio do Cervo gingando sobre o próprio dorso, na intenção de sobrepujar os obstáculos que o terreno lhe impõe. Para adivinhar-lhe o leito basta seguir com os olhos umas escassas árvores que o ladeiam, como se fossem sentinelas mais que ciosas de seu dever. Tais poucas árvores vão fraquejando em sua missão de evitar a morte do rio por asfixia, fazendo força hercúlea para sombrear alguns ralos metros de margem. É quase certeza que o Cervo não se dá conta de que seu maior obstáculo, a maior de todas as provas por que vem passando, está também às suas margens – a presença de homens de bem que nada mais desejam além de um bem viver. Pessoas que estão na lida por seu quinhão de alegria e de pão; pessoas que se esfalfam de sol a sol buscando ganhar a vida e sair-se bem com a criação dos filhos. Por isso, conquistam palmo a palmo a terra no entorno do rio, até que possam levar seu gado a beber de suas águas ou plantam em todo espaço possível. Talvez o Rio do Cervo compreenda e justifique a atitude do morador ribeirinho em seu dever de dar sustento à família, mesmo que isso signifique abrir chagas em seu dorso, inflamar seu entorno, desfazer seu leito. E de longe se tem uma vista privilegiada da tragédia anunciada. O Cervo está a céu aberto, intoxicado pelos dejetos de gados e trabalhadores, com problemas de circulação de seu precioso líquido, e sem poder reclamar, tenta dar conta de sua natureza – arejar a terra, escoar o fluído que desce dos montes, reciclar a vida.

Em outros tempos o Cervo conseguiu dar conta de si e dos que se alimentavam dele. Ainda se ouve falar dos dias em que famílias inteiras podiam variar fartamente seu cardápio, pescando às suas margens. O Cervo já foi orgulhoso dessa proeza, apesar de suas singelas proporções; grande o suficiente para impor pontes, pequeno o bastante para despertar poesia. Mas, hoje em dia, cruzamos suas águas, sobre a Ponte do Cervo, teimando, insensíveis à sua dor, em não lançar um olhar, ainda que de esgueira, para suas águas enfraquecidas. Quem sabe porque achemos que é obrigação do pequeno Cervo sobreviver, sem ajuda, sem um olhar de piedade. Um olhar de poesia já seria alguma coisa, afinal de contas os poetas têm o poder de dizer os sentimentos de um rio. E os rios agradecem. Não nos enganemos com o que vemos. O Cervo é um ser vivo como qualquer outro, e como qualquer ser vivo acaba doente se não for amado, cuidado, estimulado. Se o Cervo pudesse olhar para seu futuro, na perspectiva atual, poderia divisar sua sina: um rio morto, putrefato, como seus parentes que tiveram o azar de banhar cidades. O Rio do Cervo já foi um jovem rio, seminal, em sua juventude florida, encapelado por morros cobertos por árvores nativas. Suas margens em áureos tempos já foi visitada por animais que hoje são conhecidos apenas em fotos, filmes ou de ouvir dizer – um sinal inequívoco de seu adoecimento.

Eis que o Cervo nasce nos contrafortes das serras de Ourofino e serpenteia sobre si mesmo lambiscando Senador José Bento onde recebe duro golpe da sorte, enquanto banha a cidade; depois adentra Borda da Mata, Congonhal, onde recebe mais um ferimento; serpenteia por Espírito Santo do Dourado, Pouso Alegre, Silvianópolis, e em seguida abraça o também desafortunado amigo Sapucaí e desaparecem nas águas de Furnas. Nessas suas andanças, nessas idas e vindas, o Cervo vai encontrando aquelas boas pessoas, valentes lutadoras, ajuizadas, cuidando da vida... Aquelas mesmas que são seus algozes, arrancando sua pele, deixando-o ao relento, empobrecido, desalmado, triste. Aquelas mesmas, que ao matarem o rio empobrecem a humanidade, entristecem o mundo, azaram os próprios filhos e netos, legando-lhes uma terra exaurida, um Rio do Cervo cuja fealdade envergonha a espécie humana. Mas, mesmo agonista, o Cervo tem dois sentimentos: perdoa-lhes a insanidade, por que eles não sabem o que fazem; e sorri amargo, conformado, porque ele é só mais um rio no sul das Gerais, sem contar os incontáveis olhos d’águas nascendo débeis e descarnado pelas serras em meio a desertas pastagens, escorregando desmilingüidos pela encostas de montes áridos, evaporando-se ao sol. Em reação se encolhem, escondendo-se dentro da terra, só para desacordarem – alguns para sempre; outros esperando que alguma dessas boas almas se lembrem de onde tiramos a vida, o sustento, a beleza, a poesia. Assim, vão perdendo potência até se tornarem um fio quase invisível de vida. E os homens, aqueles mesmos bons homens, tiram o chapéu, coçam a cabeça, intrigados, e honestamente se perguntam o que fez com que morressem ou batessem em retirada.
Algumas pessoas despertadas dessa dormência por organizações protetoras da natureza e ambientalistas devotados à causa do homem ecológico, vislumbram o que está ocorrendo. Então surgem amigos do rio e olhos d’água, das árvores e ar, dos bichos e pessoas; começam a fornecer sombra aos ribeiros plantando singelos arboredos, afastando as plantações de suas margens, cultivando com o cuidado de fazer curvas de nível, reduzindo ou eliminando o uso de venenos, plantando frutíferas para seduzir bichos do chão e do céu. Outros são amigos das serras, morros e encostas, retirando de suas cristas o gado e deixando crescer a sagrada cobertura arbórea. Outros ainda conversam com adultos e crianças, na esperança de despertarem-lhes o amor à natureza, como uma semente de árvore plantada no coração.

São tantas as missões dentro da grande missão de conscientizar a população para a vida ecológica, que há espaço para se organizar muitos mais movimentos ambientalistas dentro da escola, no lar, nos clubes, nas associações de bairro e principalmente que cada pessoa se veja como uma célula benfeitora do ambiente. A missão dessas instituições, ainda que localmente fundamentadas, se fará sentir em todo o planeta, especialmente nos próximos sombrios anos para o ambiente mundial. É de se esperar que elas não esmoreçam; é de se esperar que pessoas citadinas, alhures, por motivos da vida, mas tocadas pelas necessidades dessas organizações, disponibilizem proventos e materiais variados para que tais projetos floresçam e dêem frutos dos quais a humanidade possa fruir. Homens e mulheres que vivem dessa paixão pela natureza – uns a campo e outros nas cidades – podem formar um solo rico onde todos podem se nutrir. Aí, então, do calor dessa ação conjuminada, vicejarão ricas florestas, rios vivos e pessoas melhores. E nos orgulharemos uma vez mais de cantar...
Nossos bosques têm mais vida, nossa vida em teu seio, mais amores...!

quinta-feira, 28 de maio de 2009

Na saída do metrô!

A mulher, mais de setenta anos, vestida como se fosse ao chá das cinco de uma família inglesa, olha para a outra - mesma idade, negra, vestida de tecidos ricos - e diz: " O que precisamos é que volte a ditadura! Naquela época eu andava sem medo pelas ruas de São Paulo. Nove de Julho, Paulista, centro da cidade...! Hoje é essa esbórnia, políticos corruptos, molequinhos me puxando pela saia para pedir dinheiro!
Não são cinco da tarde. Na verdade são sete e trinta da manhã, na saída do metrô. Elas deixam a escada rolante, eu também. Esqueço o assunto, pois tenho que atender meus pacientes em 20 minutos... Ditadura... Medo de pivetes... É isso... Preciso ir!

quarta-feira, 27 de maio de 2009

Trabalhando dois dias em São Paulo!

Ser psicanalista em São Paulo é a melhor experiência que eu poderia ter da vida megacitadina e, creio, um modo bastante bom de poder tentar entender as novas angústias do cidadão de Pouso Alegre-MG. O cidadão de PA já sente a atmosfera de uma vida em que os espaços são exíguos, os sonhos extensos, as fantasias fragmentárias, as vicissitudes múltiplas...

terça-feira, 26 de maio de 2009

O pomar e o deus dos cítricos!

Os últimos dias têm sido de trabalho no limite de nossas forças. A rotina é levantar cedo, café reforçado, passar a roçadeira em brachiária de um metro de altura, deixando os assa-peixes e alecrins do mato para roçar na foice. Vania junta o capim em volta das fruteiras com uma enxada grande e limpa um círculo à volta delas. Isso se faz lentamente, por mais de um hectare de pomar. Suor em bicas; braços doloridos; punhos dormentes; satisfação plena! Os quatro do apocalipse, nossos amiguinhos, sempre juntos.
Uma macieira, três pés de limão siciliano, três pés de limões do mato, vários pés de laranja, não resistiram ao ataque de brocas. Ficam lá com seus braços secos, esgalhados, desfolhados, pedindo a clemência dos céus... mas nada irá acontecer. Suas preces não surtirão efeito. Nenhum deus dos cítricos intervirá, pois as brocas também são filhas de deus. Resta-lhes o milagre de um humano, por interesse bastante datado e situado, julgar que um deles dele sobreviver... Então, com o heroísmo daqueles que sabem que a vida quer viver, mas que precisam decidir quem sobreviverá, ciosamente matamos as brocas. Ou salvamos as laranjeiras, o que dá no mesmo.
Daqui trinta dias podaremos as uvas, macieiras, pereiras, figos, caquizeiros, quiwizeiros e outros. Hoje à noite, em São Paulo, dormindo ao som do murmúrio das ruas e apartamentos, terei saudade do silêncio e do corpo quente de V. neste outono frio do Cervo... V. para não arriscar a vida (há ainda muita jararaca e cascavel no pomar) roçando sozinha, cuidará de consertos gerais por perto da morada...