Adeus Serra do Cervo!

Você que lê este blog já me viu desistir de escrever nele uma outra vez, mas pelo motivo de não encontrar uma história que valesse a pena. Depois voltei atrás por saudades de falar de terra, de bichos e de meu estado de espírito nas serras. Bem, agora é definitivo! Não voltarei mais a este espaço para descrever minha lida pelas serras do Cervo, simplesmente porque não mais estarei por lá. Se vier a escrever sobre minha longa jornada por cada recanto daquele refúgio o será em outro blog, mas para dizer das saudades, reminiscências e imagens indeléveis desta vivência. Este blog será como uma árvore esquecida na retina do viajante em um trem que dispara pelo campo. Ou como mais uma lápide no grande cemitério da web. Grato àqueles que me brindaram com sua leitura. Antes de fechar de vez este espaço farei uma última blogagem, em respeito aos que me seguem. Manterei, limitadamente, o blog http://levileonel.blogspot.com

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Um chuvisco e tudo muda!

Hoje, depois de 120 dias sem água do céu, cá estamos recebendo os primeiros pingos na cabeça, nas orelhas e costas. A fumaça do horizonte, queimando por uma semana, já é substituída por uma névoa de gotículas descendo em direção a encosta da Serra do Cervo.  Insuficiente, claro, para fazer verdejar a roça, mas umedeceu o ar e já podemos senti-lo entrando com mais facilidade pelas narinas. A mata fumegando, ainda não sentiu nenhum enfraquecimento. Os pássaros-pretos voltaram de sua longa ida para não sei que lugar. De volta, tratam de fazer sua prole aumentar e preparam ninhos nos pinheiros em frente da casa ou nas bouganvilles.
As jabuticabeiras estão carregadas. Algumas são do tipo selvagem e vieram antes das comuns e por isso foram devoradas pelos sabiás, sanhaços, tirivas, maritacas e outros. Até os jacus e tucanos se aproximam no fim do dia para degustar essa iguaria - coisa que não existe na mata, assim de graça.
    Durante os últimos 40 dias, Vania irrigou-as, religiosamente; daí que temos estas frutas negras e suculentas antes de todos os outros que deixaram por conta da chuva, que teimou em não vir. Além disso, como escrevi em outro momento, nossa água aumentou muito nos últimos anos, pelo trabalho de conservação da mata, o que nos deixou a vontade para usa-la sem culpa.
Ontem deixei Vania a meio caminho, no sítio do Dito e da Lia, donos do restaurante Recanto das Orquídeas, que já referi no passado, aqui mesmo. Enquanto passei o dia atendendo no consultório, Vania colheu morangos para fazer licor e geléia e fez um doce de Azeitonas do Ceilão (ao lado) que depois progrediu para uma mousse da fruta. Seu sabor, agridoce e adstringente, é sempre uma exótica experiência. Nada se compara a sua agudez entre o meio e final da língua! Vale a pena conferir. 
Hoje alguns de seus clientes devem ter tido o raro prazer do doce e mousse feitos com elas.
Dito é o presidente da AAECOMINAS, uma associação de produtores orgânicos, e ele mesmo planta orgânicamente verduras, e agora morangos, que acaba vendendo em feiras na cidade. Homem de convicções fortes, há doze anos vem produzindo orgânicos na tentativa de fazer frente aos produtos de horta e pomar envenenados, oferecidos ao cidadão de Pouso Alegre e região. Seu restaurante é famoso por reunir o cardápio mineiro a alimentos isentos de venenos e insumos. Em ambiente delicado com atendimento preciso de Lia, dos filhos Julio Cesar e Junior e do próprio Dito, cada um que lá passa uma tarde de sábado, domingo ou feriado, sai com a viva impressão de ter feito um saudável retiro das obrigações cotidianas. Já ao passar ao lado de sua plantação, por uma viela tomada de flores, ficamos mais leves.

Além do horizonte perdido! (escrita em 01.09.10)

    Ontem, por volta das dez da noite, resolvi passear com os cinco cães da casa. É verdade que até uns trinta dias atrás eram quatro, mas agora chamamos, para fazer ombro com a trupe, uma cadelinha preta com um losango branco no peito, abandonada na frente do estacionamento de grande supermercado em Pouso Alegre.
É a Pepita; sagaz, criada até os cinco meses na rua, com traquejo para saquear lixo e perseguir pequenos pássaros, mas de índole afetiva. Aceitou logo nosso oferecimento, o que foi uma honra para nós; ela poderia nos rejeitar como acontecera há pouco com outra cadela solta às beiras da rodovia que dá em Machado. Se negou a deixar que chegássemos sequer a lhe dar comida ou qualquer outro carinho. Nos manteve heroicamente a distancia até que um dia desapareceu da beira da estrada. Por vários dias, e mesmo ainda ontem, dois meses depois, com um olhar comprido, perscrutei as casas da beira de estrada para ver se havia alguma sombra dela. Nada! Acordei do devaneio com a frase: "Acho que a mulher do restaurante achou ela e levou-a para casa". Era Vania me colocando de novo no eixo da realidade. Acedi, mas algo em mim se recusa a admitir, na totalidade, que não a verei de novo.  
    Bem, a julgar pelo título não era da Pepita e da cadela desconhecida de beira de estrada que eu ia falar... Olho pela janela e me lembro! Nosso passeio foi preenchido de pensamentos sombrios. Tão sombrios quanto a fumaça preta de imensa fogueira feita de árvores centenárias no horizonte a leste de nossa morada. Fumaça de uma queimada que subiu a serra que coroa Santa Rita do Sapucaí, cidade que, em noite escura podemos ver o clarão das lâmpadas no céu ou nas nuvens. Mas ontem não se tratava de brilho do artifício humano, embora bem pode ter sido pelas mãos de um homem que tudo acabou ardendo. Eu e Vania olhamos longamente o colar de fogo abrasando uma imensa faixa de mata nativa. Amargos, apreensivos com a vida que foi consumida pelas labaredas, lamentamos profundamente o que o vimos. Talvez soframos mais que a média da população por termos vivido nossa infância no meio rural (eu em Apucarana no Paraná e Vania em Monte Santo de Minas), depois por trinta anos no centro de São Paulo e finalmente decidimos viver um meio termo entre cidade e campo. Estas chamas nos atingem mais no centro do ser.
   Afinal, plantamos milhares de árvores no deserto de pastagens que aqui encontramos; temos uma intimidade formidável com os bichos silvestres que para aqui migraram por força da verdadeira revolução que fizemos no microsistema. Só como exemplo, a dezena de abacateiros que aqui fizemos vegetar, produz frutos que são devorados por quase todas as espécies e tamanhos de bichos e insetos. A lista é longa, mas os mais, digamos, raros, são lobos, tatus canastras, macacos (sauás, bugios, micos), cervos, cachorros do mato, gatos do mato, tucanos, gralhas, pássaros coloridos que não sei nomear; além de uma dúzia de diferentes marimbondos, com suas bundas compridas rajadas, pintadas, luzentes, foscas; das moscas e mosquitos, borboletas etc etc. Para não falar de mangueiras na orla do bosque, castanhas do ceará espalhadas pelos alqueires de árvores nativas; um hectare e meio de bananeiras e um pomar que já citei aqui - com uma variedade próxima de sessenta tipos de frutas.
   A mata fumará pelo menos por uma semana, tal como outras queimadas que vimos há dias na direção de Pouso Alegre, Silvianópolis e Congonhal, nos apresentando um sombrio horizonte para nosso futuro. Hoje, olhamos para a borda das serras, os olhos ardendo e rezando para os deuses da chuva terem pena de nossa agonia. Mas, como todos os deuses das religiões eles se apresentam surdos e cegos ao nosso destino. Afinal, resta-nos conclamar, como já fazemos ao nosso redor, há pelo menos dezesseis anos, que outras pessoas, se incomodem com o ardume nos olhos e na existência, ao ponto de plantarem árvores frutíferas e ciliares, fazendo força contrária ao curso dos acontecimentos. Hoje, mesmo com as boas almas ecológicas trabalhando incessantemente para verdejar o mundo, nosso horizonte se esfuma trágicamente...