“Felicidade honesta” é o que minha paciente acreditava ter conseguido ao final da análise de sua existência. Por minha vez acredito poder falar de alegria honesta – estes contentamentos que de quando em vez rutilam na clareira de nosso existir. Um deles bem pode ser o que Vania sentiu ao surpreender uma lebre silvestre andando pela estradinha de terra, ladeada de lichias, bouganvilles, eucaliptos e o milharal – que vai de nossa morada ao local em que realizarei as “Experiências de Ser”. Quase posso ver aquele serzinho solitário, andando desconfiado, estalando os cotovelos das patas traseiras ao andar; a cada pulinho um balanço mais ou menos desarvorado das longas orelhas cinzas; e, finalmente, assustado, batendo as patas traseiras no chão e desaparecendo no milharal em zigue-zague – que por sinal, é seu restaurante de forças diárias. Esse pequeno vivente, ocupado com sua tarefa de viver, sob o sol frio do outono só pode, ao olhar do humano que o vê, representar uma pitada de contentamento existencial – mais uma dose de combustão afetiva no correr de mais uns dias na serra.
Quase acabei “Leite Derramado”! Chico usa uma técnica já bem conhecida de sobrepor memória, por conseguinte, tempo, e consegue nos carregar até quase o final, é o momento em que estou, interessado na vida do Eulálio, sujeito já centenário, cuja memória falha constantemente em nos apresentar sua vida. O tempo – memória – é a substância que o estilo de um romancista modela e nos apresenta. No “Leite Derramado” o efeito é pungente, comovente, mas frustrante – talvez seja o objetivo de Chico. Frustrante, porque não podemos nos fiar em nada, não podemos acreditar no romance... Talvez o livro de Chico Buarque não seja um romance! Uma saga familiar é um épico e não um romance.
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