Adeus Serra do Cervo!

Você que lê este blog já me viu desistir de escrever nele uma outra vez, mas pelo motivo de não encontrar uma história que valesse a pena. Depois voltei atrás por saudades de falar de terra, de bichos e de meu estado de espírito nas serras. Bem, agora é definitivo! Não voltarei mais a este espaço para descrever minha lida pelas serras do Cervo, simplesmente porque não mais estarei por lá. Se vier a escrever sobre minha longa jornada por cada recanto daquele refúgio o será em outro blog, mas para dizer das saudades, reminiscências e imagens indeléveis desta vivência. Este blog será como uma árvore esquecida na retina do viajante em um trem que dispara pelo campo. Ou como mais uma lápide no grande cemitério da web. Grato àqueles que me brindaram com sua leitura. Antes de fechar de vez este espaço farei uma última blogagem, em respeito aos que me seguem. Manterei, limitadamente, o blog http://levileonel.blogspot.com

domingo, 28 de junho de 2009

O dia em que Gabi chegou em nossas vidas!























Primeira foto a chuva que se aproximava; segunda Gabi, no dia em que chegou em casa; e as seguintes Gabi hoje.
A tarde de chuva de ontem convidava a algumas horas de leitura; foi o que fizemos. Eu, às voltas com a pesquisa sobre o teatro de Pouso Alegre, lendo sobre Memória (Memória da Língua de Maria Onice Payer), só sendo interrompido pelo prazer de ouvir ao longe o ribombar dos trovões que deslizavam pelas serras do outro lado do vale do Cervo. Ao longe a claridade azul-chumbo das nuvens se confundia com o mesmo azul-chumbo das colinas que nos separam de Santa Rita do Sapucaí. A chuva pesada e reta, sem um toque sequer de vento, molha com sua frialdade todas as milhares de árvores que plantamos no dorso da serra, para que servisse de moradia decente para nós e eventuais animais selvagens. Também para nossos amiguinhos caninos – Rabicho-bicho-nice, Soneca golden boss (o chefinho), a Kelly-lulu-star (estrela que se faz fotografar em todas as ocasiões) e a nova moradora da serra, Gabi-blue (o blue vem dos olhos azuis de uma amiga querida de V). Ficaram a tarde toda em seu confortável canil. Só para constar: canil aberto, sem restrições; apenas nosso comando firme e tranquilo – “todo mundo para casa”. E só. Inclusive Gabi, que sai com suas orelhas desalinhadas, uma para o centro, outra para a lateral, a língua molhada pendente para o outro e vai pelo trilho marcado na grama pelas patinhas macias de todos.
Há mês e pouco, já o disse aqui, V. e eu, num domingo de manhã, fomos fazer uma visita ao Zé Luiz e Vanderléia, no sopé da serra. Ao voltarmos catei alguns lixos entre latas de cerveja, sacos e garrafas plásticas, que “enfeitavam” a estrada que liga E. S. do Dourado ao Cervo e me dirigi para uma lixeira que nós mesmos colocamos ao chegar na região, quinze anos atrás. Trata-se de um latão de duzentos litros, preso a uma viga enterrada no solo, que fica bem na esquina formada pela estrada asfaltada e a estradinha de terra que vai dar em nossa propriedade. Ainda reclamava da insanidade das pessoas que sujam sua própria casa, rabugento por alguém fazer do mundo um grande aterro sanitário a céu aberto, quando ouvi um grito de Vania, já meu conhecido. É um daqueles sons que, no modo dela dizer, saem de seu corpo sem nenhum aviso – uma mistura de espanto, surpresa, prazer, dúvida; às vezes mais um que outro. Olhei e a vi com um cachorrinho nas mãos, de cores e aspecto que bem podia ser confundido, a certa distância, com um ouriço, um gambá, uma raposa, um gato; mas não, se tratava de um cãozinho; um filhotinho mortalmente assustado. Certamente lá estava quando descemos a serra, mas sua localização, bem atrás do latão de lixo, entremeio ao capim da mesma cor de sua pelagem, bem como sua obstinação em não se mexer, fez com que não o víssemos.
Por alguns segundos V. aninhou o bichinho no colo, pois estava frio e sua malha lhe pareceu quente e acolhedora. Imediatamente, sem refletir, decidimos que ele iria conosco. Mas havia um problema a enfrentar com delicadeza. Ele estava definido a esperar ali por seus antigos donos. Por uma lógica muito própria sabia que devia ficar ali por que fora naquele lugar que tivera a última visão de seus donos amados. V. chamou-o com sua mais doce voz, para que pudesse dar-se a desistir daquela espera infrutífera. E ele ali parado, tentando se esconder mais ainda. Tentou uma segunda vez levando-o mais alguns passos estrada acima; mesmo resultado. O filhotinho voltava amedrontado para seu nicho improvisado, deitando-se exatamente onde o deixaram na noite anterior. Víamos seu desespero, a fome na barriga encurvada, aquele nariz comprido e olhos meigos e entristecidos, olhando para nós e dizendo: “Não, não devo, ainda há esperança!”. Mas não havia... Quem o deixou fez uma delicada coleira de capim e uma pequena corda, também de capim, que fora presa por uma pedra. O intuito era óbvio; não deixar que fosse atropelado até que uma gente qualquer por ali passasse e o resgatasse. Fora o último ato de amor de seus donos. E o cãozinho ali, obstinado em esperar, com seu nariz longo e triste; as últimas esperanças por se esvair. Cedemos as evidências – o cãozinho não iria conosco espontaneamente; peguei-o no colo e descobri, erguendo seu corpinho peludo com delicadeza, que era “ela”. Ele era ela e nos pareceu mais aflitivo ainda que uma cachorrinha passasse por drama tão radical. Talvez por acharmos, com ou sem razão, que as fêmeas são mais apegadas ainda que os machos ao seu território, à casa, sabe-se lá. Depois de algum tempo, coração apertado, sem sucesso com nossos incentivos, com meus melhores gestos, retirei-lhe devagar a coleira improvisada – o último carinho, a última onda de cheiros de seu dono. Mijou de medo, olhando para o latão de lixo e o matinho tão seguro, embora pouco promissor. Acho que me odiou, naquele momento. Eu era a pior coisa que podia lhe acontecer... Resolutamente, ainda que pesando seu desespero, decidimos ir embora, e ela encolhendo as orelhas, revoluteando em meu colo, tímida, triste, triste, sabendo que não podia sair dali... Se esforça por descer e voltar ao matinho que era sua referência de vida. E eu, vem com a gente, que temos comidinha!, passando muito devagar as mãos sobre sua lanugem para não assusta-la ainda mais. Disse, filhotinho, você deve preparar-se para uma nova vida, por que a que teve até agora nunca mais viverá. Mais para mim mesmo do que para ela. Sabia que não alcançava nada do que dizia. Sabia que fora amada, cuidada, mas agora chegara a hora de tomar outros destinos. Esperei, naquele momento, que pudéssemos dar uma vida que fosse condizente com ela. Talvez a Serra do Cervo viesse a se tornar um lugar onde pudesse edificar seu corpinho e desvelar todos seus potenciais...
No mesmo instante, antecipando todas as horas de preocupações, cuidados e prazeres, que a filhotinha nos daria, Vania inspecionou-lhe as orelhas e pelagem e chegou a conclusão de que não havia doenças, pulgas ou sujeiras. Seus antigos donos banharam-na, pentearam-na e a alimentaram, como um meio de garantir que alguém se seduzisse por ela!
De jeito nenhum aprovamos que se soltem filhotinhos, nas estradas e ruas de cidades; até mesmo achamos que se deve punir a irresponsabilidade dessa prática-crime, prevista na lei. Achamos, por uma lógica nossa, que os mesmos que jogam lixo na rua emporcalhando o mundo, são os que descuidam dos bichos que dizem amar. Pode não ser uma lógica rigorosa, mas, futuramente, ao contar a saga do Rabicho e do Soneca, espero demonstrar uma das maneiras mais comuns de como isso se dá.

Bem, e foi assim que começou nossa história com Gabi, de Gabiroba, não de Gabriela, por favor!

Um comentário:

Unknown disse...

"O erro da ética, até o momento, tem sido a crença de que só se deva aplicá-la aos homens." (A. Schweitzer)

A Gabi tá lindona... já já vira uma leitoinha! bjocas